Postagem em destaque

QUINZE PRIMAVERAS

Virava, uma, duas, três vezes. Admirava meu corpo esguio e belo naquele vestido de gala. Me sentia uma verdadeira princesa, naquele momento...

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

QUINZE PRIMAVERAS

Virava, uma, duas, três vezes. Admirava meu corpo esguio e belo naquele vestido de gala. Me sentia uma verdadeira princesa, naquele momento que me foi propiciado e no qual eu tinha a sensação de ser mesmo personagem de conto de fadas. Me achei tão linda dentro da seda azul que a escolhi para ser o chamativo principal de minha festa de quinze anos. Meu baile de debutante. Por minha família ser rica, eu iria ter uma festa só pra mim, em que a personagem principal serei eu. A festa, minha noite de princesa, de conto de fadas, será daqui a duas semanas. Hoje, vim provar meu vestido. Sinto vontade de acelerar o tempo para que o dia chegue logo. Dizem meus pais, que estarei a completar quinze primaveras, mas acho que isso não é tão importante assim. Minha idade, sei lá, acho que não importa. Eu poderia fazer uma festa pra comemorar minhas dezesseis primaveras, ou as dezessete. Mas não, costume de famílias tradicionais, as tão esperadas quinze primaveras. Quero a festa, sim, mas ao mesmo tempo não quero. Tenho tantas amigas com posição social quase opostas à minha, que não tem nada, e elas nunca terão uma festa de quinze anos como meus pais insistem em fazer para celebrar meu aniversário. Gosto de ser o centro das atenções, de ganhar presentes, mas ao mesmo tempo, que importância isso tem?
   Lembro que estou novamente sonhando acordada quando a vendedora da loja me pergunta se levarei o vestido. Lhe digo que sim, e passo o cartão na maquininha estranha que eles tem lá para pagar uma pequena fortuna pela seda azul que cobrirá meu corpo daqui a duas semanas. Ela põe o vestido numa sacola, dobrado e embalado cuidadosamente. Saio da loja, sozinha, como sempre. Meus pais acham que já sou responsável por mim mesma, mas a verdade é que sinto falta da preocupação deles.
   Preciso atravessar a rua para ir em direção à casa de Camila, onde irei mostrar meu vestido à ela, esperando sua aprovação. O sinal está vermelho para os pedestres, e preciso esperar. Me ponho a pensar no grande dia. Um sonho de menina se realizando. Entro no grande salão repleto de convidados, entre os quais, amigos, família e pessoas importantes da convivência de meu pai que sequer sei quem são. Meu pai pega minha mão e me puxa para uma valsa.
   O sinal para pedestres abre, e eu me ponho a caminhar no meio da rua, vagarosamente, vivendo a valsa dançada com meu pai como se ela estivesse ocorrendo no momento.
   A valsa chega ao fim, e eu sou atingida por algo que imagino ser um automóvel. Grito, e sinto algo quente banhar minha cabeça e minhas roupas, bem como o embrulho que guarda o vestido. Passo a mão na cabeça. É algo quente e parece ser um líquido. Sangue, muito sangue saindo de minha cabeça. Minha visão começa a embaçar, meu coração perde o ritmo. Já não há mais forças pra gritar quando tudo escurece ao meu redor.
***
   A primeira luz da manhã cega meus olhos, que ainda se encontram fechados. Há pessoas em minha volta falando palavras que aos poucos começam a fazer sentido para minha mente embaralhada. Uma voz aconchegante começa a falar em um tom mais urgente, o que me faz ficar imóvel para que não parem de falar se descobrirem que estou acordada.
   - Qual é o quadro dela, doutor? – pergunta meu pai, preocupado.
   - Ela já não apresenta piora, o que já é um bom sinal. E saiu do coma, o que indica que a situação dificilmente se agravará. – responde uma voz que não consigo reconhecer.
   “Quer dizer então que estive em coma” – pensei com meus botões.
   - Ela poderá realizar a festa, doutor?
   - Por poder pode, mas eu recomendo um período de descanso até que ela se recupere totalmente.
   Ouço uma porta abrindo e fechando. Alguém entrou ou saiu do lugar. Deduzo que saiu, pois meu pai começa a falar sozinho.
   - Porque, meu Deus? Porque fui tão irresponsável? Ela podia ter morrido, e eu, eu sempre sem dar atenção pra ela, e aqueles olhos, aqueles olhos de menina assustada vão me assolar pro resto da vida. Porque não prestei atenção no trânsito? Porque tive que atropelar justamente minha filha? Porque, meu Deus, porquê? O que fiz pra merecer isso?
    Fico com dó de meu pai, apesar de ter escutado sua confissão. Por incrível que pareça, não consigo sentir raiva do homem que quase me matou, e que eu chamo de pai. Não consigo, porque, ao escutar o choro desabalado dele, desesperada, sinto uma necessidade urgente de confortá-lo e abraçá-lo. Abro os olhos para dizer ao meu pai que está tudo bem, que foi só um susto, mas, ao fazê-lo, tenho a sensação de não os ter aberto. Tudo está escuro ao meu redor.
   - Pai, quem apagou a luz? Pede pra eles ligarem?
   O choro dele para, tudo é silêncio.
   - Pai?
   Sinto um abraço forte me envolvendo, me transmitindo a energia que eu necessitaria para suportar o momento que estava por vir.
   - Pai? Liga a luz?
   - Minha filha, a luz está ligada.
   De repente, toda aquela escuridão faz sentido e a cegueira que eu acabava de perceber se rebela dentro de mim, de dentro pra fora, em forma de grito.
***

   Sentada em minha cadeira de balanço, na varanda de casa, eu sorrio. Há duas semanas, ao descobrir-me com vida, recém saída do coma em uma cama de hospital, eu experimentei um pouco do que todo cego passa. Sem poder ver nada, sem poder admirar a vida como ela realmente é. Felizmente, minha cegueira foi passageira, e hoje consigo enxergar novamente, apesar de precisar do auxílio de óculos. Descobri que a vida é mais complexa do que parece, e que é mais valiosa do que eu acreditava. Não tive minha festa de quinze anos com a qual eu tanto sonhava, mas, em compensação, ao invés daquele monte de presentes que eu esperava ganhar, o presente que eu recebi foi muito maior: a oportunidade de viver novamente, de poder sentir satisfação com a brisa suave da primavera acariciando meu rosto, de me sentir segura e sentir que existo verdadeiramente pela primeira vez. Hoje, tenho a preocupação de meus pais para comigo, o que eu não teria se não tivesse sido atropelada naquele dia. Hoje, apesar de não ter tido a festa, e apesar de ainda ter algumas cicatrizes do acidente, eu me sinto feliz e realizada, porque eu recebi o melhor presente que poderia ter recebido de Deus: a oportunidade de perdoar meu pai, e, acima de tudo, a oportunidade de recomeçar, de tentar de novo, a oportunidade de viver, e de aproveitar a vida mesmo com todas as circunstâncias.

domingo, 27 de setembro de 2015

   SENTI uma mão agarrar a minha. Virei, e deparei-me com minha palma sendo beijada por um estranho. Ele olhou-me, e sorriu. Os olhos brilhavam, as mãos gesticulavam, transmitindo as palavras que os lábios não podiam pronunciar.

domingo, 23 de agosto de 2015

A TAL FELICIDADE

   A felicidade não é para todos, apenas para aqueles que buscam alcançá-la. Mas, mesmo que este conceito seja provado várias e várias vezes, ainda existirão as pessoas que acham que vão conseguir comprar a felicidade. Com riqueza, com poder, com status. E estas pessoas, elas estão terrivelmente enganadas. Felicidade não se compra. Felicidade não se vende. Ela não tem preço, mas tem um imenso valor.
   Ser feliz não quer dizer ser rico. Não quer dizer ser famoso, e, muito menos, quer dizer que ser feliz é ter tudo do bom e do melhor. Não. Não é que eu queira dizer que quem tem uma posição social mais elevada não possa ser feliz. Não é que eu queira dizer que os bens materiais não são importantes. Eles são, mas não são a causa da felicidade. Eles são somente um complemento, mas não a essência.
    E talvez seja neste ponto que o ser humano para e se questiona: o que é, afinal, ser feliz? O que precisamos fazer para alcançar a tal felicidade?
   Esta pode parecer uma questão bastante complexa, mas na verdade, ela é mais simples que somar dois mais dois.
   Muitas pessoas passam a vida inteira questionando-se e perguntando-se quando chegará o dia em que serão felizes. Mas elas, em seu sonho e seu mundo, aquele que colocam como sendo o perfeito para si mesmas, essas pessoas estão perdendo um tempo precioso.
    Talvez você já tenha ouvido falar que a felicidade não é um destino, não é uma meta, não é um objetivo. Você não vai encontrá-la no fim do trajeto, mas sim, no decorrer dele. É, como citei antes, uma questão muito simples. Não é fazendo, ou tentando fazer as coisas mais importantes do mundo que você vai ser feliz. Não é casando com a pessoa mais bonita e mais importante do pedaço que você transbordará felicidade. Não é tendo as melhores coisas, ou a casa ou carro mais bonito e mais caro de todos que você estará com dizeres luminosos na testa, mostrando a todos que você é feliz. Não. O caminho para a felicidade não é por aí. Ao contrário, ele é o caminho para uma sensação de felicidade, mas não para a felicidade que você precisa para enfrentar o dia-a-dia.
   Como dizem, é vivendo um dia de cada vez que se aprende. É vivendo um dia de cada vez que se é feliz, que se constrói a felicidade. Claro que haverá aqueles dias em que ela parece ter se ausentado, mas nesses, eu garanto, quem sabe ela está tentando abrir os olhos das pessoas que ainda acham que ela pode ser comprada.
   Não estou aqui para julgar. Não estou aqui para dizer o que você tem que fazer ou não. Não estou lhe dando a receita para a felicidade, pois ela varia dependendo de cada um. Cabe a você mesmo abrir os olhos, deixar a venda cair. Cabe a você parar de tatear no escuro e ligar o interruptor. Eu não posso mostrar-te o caminho, porque ele é diferente para cada um de nós. A decisão, bom, ela está em tuas mãos: é você quem vai decidir se quer ser feliz, ou se quer continuar se iludindo com coisas que não tem nada a ver com teu propósito.

    É só querer. Basta crer. Você pode ser feliz. Todos podemos. Afinal, se nós queremos, até o vento sopra a nosso favor.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

DELICADEZA

Delicadeza
Está na pureza
E na beleza
De uma flor.
Olho pro norte
Maldita sorte
Trará a morte
E um amor.

Delicadeza
Certa tristeza
E a grandeza
De saber sonhar.
Somente ver
E esquecer
E aprender
Saber amar.

Delicadeza
Na natureza
Que traz presteza
Incontrolável.
A imagem das flores
E dos sabores
Bonitas cores,
Irrefreável.

Delicadeza
A flor na mesa
E a certeza
De se entregar.
A luz da lua
Prateada na rua
Para que a sua
Alma possa sonhar.

domingo, 9 de agosto de 2015

A PRINCESA DAS FADAS

   Vagueava pelos bosques ainda escuros, onde os primeiros raios da manhã ainda não tinham chegado. Naquele dia em especial, havia no ar uma aura de mistério, que fazia com que eu simplesmente caminhasse e contemplasse a obra maior de Deus. Mesmo que a dor ainda fosse intensa, e que meu coração ainda estivesse em frangalhos, ali pensei ter sido invadida por um misto de alegria e felicidade, que desabrocharam em um sorriso há muito tempo esquecido, e que fizeram-me esquecer, ao menos por um tempo, que eu era uma pessoa infeliz.
   Caminhando, deixando meus passos gravados na terra molhada que eu pisava, não percebi que desviei-me  de meu caminho, indo parar numa espécie de clareira, desconhecida até mesmo para mim, que já moro há muito tempo nesta região.
   Apesar de não saber como voltar para o bosque, e de estar, confesso, perdida, resolvi aproveitar a oportunidade para dar um passeio pela clareira e conhecê-la, pois mesmo perdida, a noite estava distante.
   Aquela clareira era um verdadeiro paraíso, mostrando que contos de fadas podem ter sim uma pitada de realidade.
   Madressilvas, bromélias, tulipas, margaridas, rosas e mais um emaranhado sem fim de espécies de flores de todas as cores e tamanhos. Um verdadeiro paraíso! E, o mais incrível, aquele jardim era bem cuidado. Quem poderia ser o responsável por esta obra de arte? Seria homem ou mulher? Apostava que fosse uma mulher, mas não sabia da existência de moradias por estes lados. Se tivesse alguma casa, seria no bosque ao lado do jardim, que distanciava uns dez metros de mim. Apesar de eu nunca ter sido bisbilhoteira, queria falar com o dono ou dona do jardim, e pedir algumas dicas para o meu próprio, que estava meio abandonado.
    Pensando nisso, e sorrindo pelo efeito que o pequeno paraíso causara em mim, caminhei vagarosamente os poucos metros que me separavam do bosque, absorvendo cada detalhe das flores, que tinham, com toda certeza, um brilho diferente de todas as que eu já tinha visto, como se fossem mágicas.
   Nesse momento, apesar de ansiar por chegar logo ao bosque, eu reparei em uma flor, pequenina, que parecia irradiar fogo, tamanho o seu brilho. De cor laranja, e com pétalas miúdas de delicadeza visível, eu não saberia identificar de que espécie ela era.
   Admirei-a por um tempo que me pareceu infinito. Busquei nas profundezas da memória alguma flor como aquela, mas minha tentativa foi em vão.
   Voltei à realidade ao perceber um certo movimento nas folhas de uma árvore frondosa, que distanciava a uns dois metros de mim. Sorri. O bosque e o dono do jardim que me aguardassem. Eu não sairia dali sem saber a quem pertencia aquela preciosidade.
   Me dirigi à árvore em que as folhas pareciam dançar. Afastei os galhos, e, para meu espanto o que encontrei não foi uma forma de vida humana. Serpenteavam na minha frente, pequenas fadinhas de feições delicadas como as flores do jardim às minhas costas. Minha cara devia ser de espanto, ou de surpresa, pois elas pararam com seu voo gracioso para me encarar como que procurando algo em meu rosto que revelasse meus pensamentos e sentimentos.

   Abri os olhos e vi, não sem um misto de surpresa, duas criaturinhas voando na frente de meus olhos. Belisquei meu próprio braço para confirmar se o que estou vivendo é sonho ou realidade.
   Pelo visto era realidade, pois eu não acordei com um salto ou caí da cama depois do beliscão. Ele só me fez sentir mais dor.
   As fadinhas continuavam ali, me encarando. Eu parecia ser atração para elas.
   Sentei-me. Não parecia estar em um bosque, pois não via nenhuma árvore perto de mim. Parecia mais um casa. Perguntei às criaturinhas onde eu estava, e elas me disseram que eu tinha chegado ao reino delas.
   - Então não estou no bosque?
   - Não, você está aqui, no Reino das Fadas.
   - Mas, e porque eu?
   - Você encontrou nosso portal, onde nos comunicamos com o mundo dos humanos.
   - Mas eu só vi o jardim...
   - Exatamente, mas é justamente no jardim que está nosso portal.
   Devo ter feito cara de quem não entendeu nada, pois ela acrescentou:
   - Nosso portal se manifesta através de uma flor laranja, pequena, delicada, suave, miúda. Uma florzinha laranja de brilho incontestável que parece irradiar fogo.
   - Ah.
   - Agora, se a senhorita me der licença, preciso ir a meus afazeres.
   - Claro, sem problemas.
   A fadinha de asas e feições delicadas saiu, e eu fiquei a imaginar como seria a minha vida se eu tivesse asas.
   Sorri ao perceber que não estava sozinha. Tinha por companhia uma fadinha mais miúda que a anterior, e que parecia tímida ao me observar.
   - Oi – arrisquei.
   Atrapalhada, ela tentou se esconder atrás de uma caixa ao perceber que foi descoberta. Ri da inocência da pequenina, que por sua vez, espiava por detrás da caixa.
   - Não precisa ter medo, pequena. Como é teu nome?
   - Ga... Ga... Gaia...
   - Gaia. Mas que belo nome.
   Ela, por fim, pareceu um pouco mais calma. Aos poucos, ela foi saindo de seu esconderijo.
   - Gaia?
   - O que, senhora?
   - Pode me chamar de senhorita. Não gosto de me sentir velha.
   - Ah. Senhorita, o que desejas?
   - Quero saber mais sobre vocês.
   - Vocês quem?
   - Ora, as fadas.
   - Nós?
   - Exato, Gaia. Por favor, fale-me sobre vocês.
   - Hum, ok. Nós somos seres mágicos. Nossa existência remete a 500 anos, isto é, há 500 anos surgiu a primeira fada na face da Terra: a Fahir. Minha avó conta que quando ela nasceu, filha de uma princesa que se apaixonou por um unicórnio, ela era a primeira da nossa espécie. Porém, a mãe de Fahir odiou-a no instante em que ela nasceu porque não parecia nem com ela nem com o pau dela. Fahir, então, foi abandonada, deixada aos próprios cuidados. Ela vagou durante dias, com frio, fome e medo, levada pelo vento ou pela chuva. Comia pétalas de margaridas para sobreviver. Um dia, encontrou uma árvore oca, e entrou nela para se abrigar da tempestade que viria e que parecia que seria forte. Ela adormeceu lá mesmo, esperando que o mau tempo passasse. Fahir acordou no meio da noite com uma luz ofuscante que vinha da parede da árvore. Aproximou-se, e ao tocar na luz, esta a puxou para dentro. Era um portal, e ela caiu aqui, no nosso reino. Contam as histórias que quando Fahir chegou, o reino era muito mais bonito do que é hoje. Bom, ela chegou aqui e se encantou com o lugar.
   “Descobriu que o portal para o mundo dos homens mudava constantemente, e tratou de alterar isso com sua magia. Criou o jardim que a senhorita viu, e transformou o portal na flor laranja. O segredo do portal é que todo humano infeliz e com um coração bom, que prestasse atenção nela, mesmo com sua pequenez, esboçasse felicidade ao admirá-la, iria automaticamente acionar um alerta para a rainha, que viria receber a pessoa.
   “Bem, preciso lhe dizer, antes de mais nada, que Fahir, bom, ela não era como nós, ela não tinha nosso tamanho. Ela tinha a estatura de um humano normal. Mas isso ainda não vem ao caso. O fato é que ela estudou muito bem as plantas, mas, entre elas, principalmente as flores do nosso mundo, e descobriu um meio de se auto reproduzir em um ser menor. Ali, ela criou fadas menores, criou a minha espécie. Primeiro, ela criou um casal, que foi dando origem a toda a linhagem de fadas que existem.
   “Um dia, o alerta tocou no mundo das fadas. Foi um alvoroço só. Fahir disse que iria averiguar quem seria o humano que, mesmo sem querer, havia descoberto nosso portal. Por um mês, Fahir sumiu. O mundo das fadas virou de ponta-cabeça.
   “Foi uma festança quando ela retornou. As fadas a receberam com uma festa de dar inveja a qualquer humano. Porém, Fahir estava diferente. Em seu pulso, havia uma marca desconhecida para as fadas do reino: uma coroa cinzenta, na parte inferior de seu pulso da mão direita. Em seu discurso, Fahir disse que aquela marca era a marca do amor que ela havia recebido. Que ela se apaixonara pelo humano que acionou o alerta no reino. E que ela estava esperando um filho dele, que seria o Príncipe das Fadas, o herdeiro do trono que ela ocupava.
   “O encerramento do discurso marcou o início dos festejos no reino. As fadas ficaram em polvorosa. Nos meses que se seguiram, todos preparavam-se para a chegada do príncipe.
   “Porém, uma certa aflição tomou conta do reino quando souberam da doença da rainha. Dedicaram-se os criados a cuidar dela com ainda mais zelo e dedicação.
   “Numa manhã chuvosa de primavera, nascia Salin, o Príncipe das Fadas, e morria Fahir, a Rainha das Fadas já a trezentos anos. Naquele dia nasceu minha avó.
   “Você, senhorita, deve estar pensando que o Salin já é velho, mas a verdade é que os membros da família real, isto é, os descendentes de Fahir, só envelhecem até os vinte anos. Mesmo com seus duzentos anos, Salin ainda parece ter vinte.”
   - Então, ele ainda vive?
   - Sim.
   - E você, se não for incômodo, que idade tem? E sua avó, ainda vive?
   - Tenho cinquenta. Sim, ela vive, mas nós, fadas menores, começamos a envelhecer aos setenta e cinco anos; até ali, temos cara de vinte também.
   - E com que idade geralmente morrem?
   - Geralmente duzentos e cinquenta anos.
   - Hum.
   - Senhorita?
   - Sim?
   - Provavelmente Salin irá vir visitar-te, pois és a primeira a acionar o portal depois do dia em que a rainha saiu e apaixonou-se por aquele humano.
   - Ah.
   Escutamos passos. Eles eram leves, delicados, pareciam pena batendo no chão. A maçaneta da porta girou, e entrou um homem, elegante, bonito, forte, que aparentava ter vinte anos. Porém, tinha duas asas coloridas e enormes, mas, sobretudo, delicadas. O príncipe Salin.
   - Boa tarde, senhorita.
   - Boa tarde, alteza.
   - Sem formalidades. Me chame apenas de Salin.
   - Atena.
   - Atena, que lindo nome.
   Corei.
   - Será que você gostaria de vir comigo a um passeio?
   - Seria encantador.
   Ele estendeu-me a mão, e assim que pus a minha entre aqueles dedos seguros, ele surpreendeu-me com um beijo delicado e demorado em minha palma direita.
   O passeio foi maravilhoso. O reino era maravilhoso. Havia milhares de fadinhas como a que me contara a linda história da rainha. Havia uma imensidão ainda maior daquele jardim encantado que eu descobrira pela manhã. Estava maravilhada com a companhia de Salin, mas eu precisava ir. Expliquei-lhe minha intenção, e ele concordou. Levou-me de volta a Gaia, para que ela me indicasse o caminho de volta.
   - Ele não é lindo? – comentou Gaia.
   - Sim, e muito simpático e atencioso.
   - Acho que gostou de você.
   - Pare de dizer bobagens, Gaia.
   - Ok, mas bem que vi ele dando-lhe olhares furtivos.
   - Gaia!
   - Ok, parei. Sabe, senhorita Atena, dizem que quando Salin apaixonar-se, sua escolhida, depois de quatro horas, se verá com asas iguais às dele, e com uma coroa cinzenta marcada no pulso, assim como houve com Fahir.
   - Tá, tá, tudo isso é muito lindo, mas quero voltar para casa.
   - Ok, deite-se, senhorita. Vou lhe aplicar essa injeção e você acordará na campina ao lado do bosque e do jardim.
   Acenei e ela injetou o líquido púrpura fosforescente em meu braço.

   Abri os olhos. A lua já ia alta no céu, iluminando o jardim ao meu lado.
   Sorrio ao lembrar do sonho, das fadinhas, de Gaia, e, principalmente, de Salin.
   Levanto. O caminho é longo até em casa.
   Passo por um lago e resolvo beber água, pois minha garganta está muito seca. Ao lavar a cara, e ver meu reflexo na água, algo me surpreende: vejo duas enormes asas coloridas me emoldurando. Apalpo-as, achando que são fruto da minha imaginação, mas constato que sim, são reais! Imediatamente, viro minha mão direita, e lá está ela: a coroa cinzenta, em meu pulso, o símbolo da nova princesa das fadas.


quinta-feira, 9 de julho de 2015

CAMADAS DE SOLIDÃO

Camadas de poeira
Por sob as caixas velhas jogadas
Anos à derradeira
Da sorte acumulada.

Caixas que já apanharam
Vento, chuva e umidade
Mas que pelo valor aguentaram
O castigo do tempo e sua vontade.

Jogadas num canto esquecido
Verdadeiros tesouros em solidão
Provocarão risos divertidos
Lembranças boas para o coração.

Se um dia descobertas
Por alguém com curiosidade
Talvez por crianças espertas
Ou por pessoas de idade.

São lembranças de alguém
Que quis guardar seu coração
Mas pelo visto, o que estas caixas tem
São camadas de solidão.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

NICO FAGUNDES: A LENDA DO RIO GRANDE DO SUL

Com certeza, o Rio Grande do Sul amanheceu mais triste na última quinta-feira. No dia 24 de junho nós, gaúchos, perdemos um grande homem: partiu Antônio Augusto Fagundes, o Nico Fagundes, um ídolo que deixará marcas no coração de todos os tradicionalistas.
   Nico foi o poeta do Alegrete, além de historiador, antropólogo, folclorista, compositor, escritor, político, apresentador de televisão, radialista, e, com certeza, um amante do nosso Rio Grande e da nossa tradição como poucos o foram.
   Marcou o coração de todos os gaúchos com uma canção de apego ao pago, de amor à tradição, que se tornou uma espécie de hino em nosso estado: o Canto Alegretense. Esta música, mesmo tendo mais de 30 anos, hoje ainda é considerada pelos gaúchos, e entoada a plenos pulmões por qualquer peão ou prenda que sinta orgulho de ser gaúcho.
   Nico Fagundes trouxe às casas  de todos os rio-grandenses, nas manhãs de domingo, um “galpão” onde era demonstrado o amor à terra, incutindo em todos os gaúchos o mesmo sentimento. Este foi o seu Galpão Crioulo, programa por ele fundado, o qual apresentou por mais de 30 anos.
   Quem já não ouviu, sendo gaúcho de peito e alma, a famosa frase que faz-nos sentirmo-nos mais peões e mais prendas, filhos do Rio Grande? O seu “gaúchos e gaúchas de todas as querências” nos identifica, nos torna únicos.

   O Rio Grande perdeu um grande gaúcho, um grande homem, mas nós, seus admiradores, fomos pessoas de sorte por termos herdado seu legado, que nos faz dizermos com orgulho que somos gaúchos, nos faz campear nossas próprias origens para acharmos nossa própria essência de gaúchos e gaúchas de todas as querências.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A NATUREZA E O HOMEM

   Já que neste mês de junho comemoramos o Dia do Meio Ambiente, deixo este poema para o ser humano pensar um pouco mais em suas atitudes e gestos para com esta parte importante do planeta.

Onde está a natureza?
As matas, as flores coloridas?
Para onde foi tanta beleza?
Será que foram esquecidas?

Talvez, mas não é só isso não,
É o homem, com seu ingrato coração
Só pensa na fama e no dinheiro
Só sabe à vida dizer não.
Até age como um ladrão!


Um ladrão da vida
Um ladrão da paz
Por conta própria ele não faz
É um ser tão incapaz!

Tão incapaz que gera violência
Faz concorrência
Não liga pra descendência
Diz não à obediência
Não tem prudência
Nem um pouco de coerência
Só liga para a tendência
E não pensa na sobrevivência.

O homem tanto fala
Que é preciso preservar
Mas como querem dar exemplo a outros homens
Se a própria espécie já começam a matar?

Porque não dão um basta na poluição?
Porque não param de matar os animais?
Porque insistem que isto é coisa da vida?
Até quando estes seres mentirão?

Quanto tempo precisam para na real cair?
Quando o homem a natureza ajudará?
O melhor é logo começar a agir,
Ou tempo para viver não sobrará!

sábado, 20 de junho de 2015

UM DIA SEREI ALGUÉM

No meio de todo esse mundo que ameaça desabar ao meu redor, eu ainda encontro um pouquinho de paz. Sim, parece impossível, coisa totalmente sem sentido, mas é o que sinto e o que me resta no meio dessa baderna que me cerca. Os sentimentos que afloram de meu peito e de minha alma e que poderiam me angustiar até meus suspiros finais de loucura, somente me dão forças para erguer a cabeça e seguir em frente. Sim, porque eu vou seguir em frente. Não importa o quanto as pedras que se prendem em meus sapatos incomodem, ou quanto os espinhos que invadam meu caminho me machuquem e façam sangrar meu coração. Não importa quantas pessoas falsas, mau-caráter cruzem meu caminho, tentando tirar proveito de minha ingenuidade e bondade. Não importa quantas pessoas idiotas me digam que não vale a pena continuar lutando e lutando, eu vou olhar pra elas e simplesmente mandá-las cuidarem de suas vidas, por que um dia, sei que um dia ainda vou poder olhar na cara delas e rir da pouca credibilidade que depositaram em mim, e da perplexidade e surpresa que invadirá os rostos delas quando virem que minha tentativas não forem infrutíferas.
   Sei que sou diferente das pessoas. Elas sentem isso. Eu sinto isso. Por onde passo, parece que deixo uma nuvem de tensão e inquietude pairando no ar. As pessoas me olham como se eu fosse de outro planeta. Mas não posso dizer que elas estão erradas. Porque talvez não estejam. Ou talvez estejam. Mas isso, em uma questão significativamente grande para alguém como eu, não tem importância. Mas mesmo que tivesse, eu deixaria pra lá e me preocuparia em ser eu mesmo, e não em dar importância para o modo como as pessoas me olham ou o que elas pensam de mim. Eu vivo em meu mundo, tentando provar pra mim mesmo que posso fazer algo de útil, e não somente sentar essa bunda gorda em uma cadeira e ficar olhando o sol dar sua volta ao redor da Terra. Ou a Terra sua volta ao redor do sol. Tanto faz. Só que eu quero ser ALGUÉM. Não alguém qualquer, alguém normal, alguém entediante como todos acabam se tornando. Eu quero ser alguém na vida de alguém. Eu quero ser importante pra alguém. Não somente um pontinho mal iluminado que ninguém vê.
   E sei que mesmo que as pessoas zombem de minha aparência física, e me considerem meio louco e distorcido das ideias, mas elas, quando falam isso, não percebem que apontam um dedo pra mim e quatro pra si mesmas. Elas me julgam mas esquecem de olhar o espelho quando levantam pela manhã. E eu não digo olhar, pra ver teu rosto refletido no vidro. Eu digo ver, mas ver mesmo, a alma que te identifica e diz quem tu és verdadeiramente. Porque todo mundo tem uma alma, certo? Todo mundo tem algo que identifica a si mesmo e te aconselha a tomar as decisões que tu tomas. Todo mundo tem um eu interior.

   Mas não é sobre isso que quero falar. Não é isso que quero provar. Não vim aqui pra desabafar ou reclamar da vida, ou reclamar das pessoas que não me notam. Não. Eu vim aqui pra dizer, pra registrar, que um dia eu ainda vou ser alguém. Sim, ALGUÉM. Com A maiúsculo. Não pra todo mundo, porque sei que isso é impossível. Mas um dia ainda farei a diferença na vida de alguém. Nem que sejam alguns minutos.

domingo, 14 de junho de 2015

A Natureza e o Homem


Onde está a natureza?
As matas, as flores coloridas?
Para onde foi tanta beleza?
Será que foram esquecidas?

Talvez, mas não é só isso não,
É o homem, com seu ingrato coração
Só pensa na fama e no dinheiro
Só sabe à vida dizer não.
Até age como um ladrão!


Um ladrão da vida
Um ladrão da paz
Por conta própria ele não faz
É um ser tão incapaz!

Tão incapaz que gera violência
Faz concorrência
Não liga pra descendência
Diz não à obediência
Não tem prudência
Nem um pouco de coerência
Só liga para a tendência
E não pensa na sobrevivência.

O homem tanto fala
Que é preciso preservar
Mas como querem dar exemplo a outros homens
Se a própria espécie já começam a matar?

Porque não dão um basta na poluição?
Porque não param de matar os animais?
Porque insistem que isto é coisa da vida?
Até quando estes seres mentirão?

Quanto tempo precisam para na real cair?
Quando o homem a natureza ajudará?
O melhor é logo começar a agir,
Ou tempo para viver não sobrará!


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Devaneios de um Louco

 Andando sobre a ponte velha, daquelas bem antigas e imponentes, eu pensava na vida. Refletia, e quebrava a cabeça, por um motivo que sem dúvida algumas pessoas normais considerariam coisa de louco. Talvez eu realmente seja louco, não duvido e nem me preocupo em defender-me do que os outros falam, afinal, eles são só os outros. Talvez eles falem de mim pois tem inveja do meu modo de vida, de minha loucura e de minha não preocupação em cuidar da  vida dos outros. Não sei, mas sinto que tudo o que eles falam de mim tem um motivo e uma justificativa. Nem que seja o mais bizarro possível, mas eu acredito que tenha, pois ninguém fala de outra pessoa só por falar. Afinal, isso também é um motivo.
   Sei que na escola, nos corredores, as pessoas procuram me ignorar e tentar evitar tocar em mim. Como se loucura contagiasse com um simples e único toque. Mas também, vai saber. Até hoje ninguém descobriu a cura pra doença chamada loucura, e nós, os loucos, temos que sofrer as consequências, somos ignorados pela sociedade porque somos diferentes, porque pensamos de um modo diferente, nos vestimos e agimos de um modo diferente. Sei que isso não é justo e mesmo em minha loucura e meus devaneios eu sinto isso. Mas não reclamo. Não reclamo porque tenho minha loucura pra me fazer companhia.
   Como louco, amo caminhar por entre o campo rosa, colorido com flores de cor cinza. Amo sentar em baixo do pé de bananeira, de onde volta e meia caem maçãs que batem em minha cabeça. Amo arrancar punhados daquela terra roxa, e fazer bolos pra depois comer. Adoro ver as vacas rosas pastando, comendo e fazendo piqueniques com os cachorros azuis. Me dá paz e uma sensação de tranquilidade quando posso apreciar os últimos raios de sol branco, se destacando no amarelo do céu, do mesmo modo que as nuvens verdes parecem querer cair a qualquer momento. Adoro correr e deixar a brisa acariciar meu rosto, pois essa brisa deixa a pele mais lisa e bonita. Adoro comer triângulos no café da manhã, depois tomar felicidade pra afastar a sede. Adoro sentar no banco de chocolate da praça, pra observar as crianças brincando de namorar.  Adoro subir numa árvore de jabuticaba, pra pegar o mel das abelhas que me amam. Elas me beijam na face com tanto ardor que minhas bochechas chegam a inchar.
   Adoro comer livros também. Porque ler eles, se posso comer as palavras que estão escritas nele, e tê-las inteiras só pra mim?
   Adoro cheirar pedras, mas daquelas pedras moles que se pode comer no almoço. Amo conversar com estátuas, elas parecem sempre me entender. As paredes do meu quarto também me entendem, mas estas são as únicas mesmo.

   Sim, eu amo ser louco. Quando se é louco, a vida é mais divertida. Como eu sei? Não sei, eu só sei. Agora, pra ti que nunca me dava bola, vai ser louco. Porque quem é louco é feliz. Tchau pra ti ser humanozinho dramático, vou lá conversar com as vacas rosas e as estátuas que agradecem por minha convivência.

domingo, 7 de junho de 2015

À LUZ DA VELA

À luz de uma vela
Eu escrevo apressadamente
A claridade se vê na janela
Refletindo as palavras que nascem da mente

A mão corre pelo papel
A tinta se esvai da caneta
Minha letra borra quando olho pro céu
Observando as estrelas com uma luneta

Um rabisco na imaginação
E a história flui concreta
A mente vaga sem resistência e pressão
E a folha se mostra repleta

Repleta de palavras sem sentido
Que depois viram poesia
Trechos de momentos vividos
Lapsos de paz e alegria

Palavras que se tornam belas
Transmitindo serenidade
Escrevendo à luz de uma vela
Para que a imaginação vire realidade.

domingo, 31 de maio de 2015

EU TENHO FÉ

Eu tenho fé no futuro
Eu tenho fé na vida
Nem tudo está no escuro
Nem toda esperança perdida.

Eu tenho fé no mundo
Em seu eterno esplendor
Em seu ser fecundo
Em seu pleno vigor.

Eu tenho fé nas pessoas
Acredito que façam a diferença
Que a maioria delas são boas
Que fazem jus à sua crença.

Eu tenho fé na amizade
Unindo corações para a eternidade
Por um sentimento, uma verdade
Que torna a vida uma realidade.

Eu tenho fé na dor
Mostra como tu é capaz de sentir
De curar com o poder do amor
O sabor de voltar a sorrir.

Eu tenho fé na solidariedade
Na alma que outra ajuda
Eu tenho fé na verdade
Mesmo que esta seja muda.

Eu tenho fé no amor
Que é capaz de curar
De fazer felicidade, e causar dor
Dar vida a quem é capaz de amar.

Eu tenho fé em Deus
Sei que está comigo até o fim
E que cuidará dos bisnetos meus
Do mesmo modo que cuida de mim.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

OLHAR INPENETRÁVEL

   Naquele dia eu precisava acordar cedo. Disso lembro-me como se fosse ontem, porque acordo cedo todos os dias desde aquele em que minha vida mudou por completo.
   Lembro-me, e com certa vergonha, que eu era um ser humano daqueles que se podem considerar, e com razão, arrogantes. Eu não tinha tempo pra nada e pra ninguém, tudo o que eu fazia girava em função de um único motivo: minha própria existência e felicidade. Mas acontece que eu não era feliz, parecia que sempre faltava alguma coisa em minha vida. Eu não sabia o que era, mas na época parecia ser a ascensão tão desejada na carreira de advocacia. Era meu maior e único sonho. O resto, nada importava. Eu não queria, me recusava determinantemente, a sair de casa nas noites de sábado, para ir a algumas baladinhas, como era costume de alguns amigos meus. “Você precisa se divertir”, diziam-me eles. Mas eu confesso, na época eu não gostava de ir aquelas festas consideradas por meu subconsciente como sendo hipócritas. Nos fins de semana, preocupava-me em adiantar alguns papéis e documentos da empresa, para que, quem sabe, eu pudesse conseguir uma promoção, coisa que era possível acontecer em breve, em razão, do que dissera meu chefe, “de uma dedicação de corpo e alma à nossa empresa”. Me orgulhava disso, considerava-me importante, um dos funcionários de maior destaque da “Advocacia e Cia”.
   Naquela segunda-feira pela manhã, eu começaria um novo horário na empresa. Trabalhava com um meio turno há seis anos lá, e agora, por conta de minha total dedicação e ajuda para com meus chefes e clientes, eu começaria o trabalho em tempo integral. Por isso, eu precisava levantar cedo. Não podia atrasar-me de jeito algum, ou seria o fim do avanço em minha carreira que sequer começara.
    O despertador tocou às seis horas da manhã, soando como algo que irritava facilmente meus ouvidos aguçados. Eu começaria meu turno às oito horas, mas, como poderia haver congestionamento nas ruas movimentadas daquela cidade, preferia chegar antes. Por isso, o despertador me acordou tão cedo. Levantei de um salto da cama que eu começara a pagar em dezembro do ano anterior, parcelada em doze suaves prestações, e que eu  terminaria, (felizmente!), daqui a um mês.
   Peguei apressadamente a roupa que tinha jogado, na noite anterior, em cima da poltrona feita de algum material parecido com o couro. As roupas estavam do avesso, e ainda por cima, a camisa social branca que eu reservara estava, na ponta, perto do último botão de baixo, manchada com algum tipo de molho, certamente do molho de cachorro-quente que eu jantara na noite anterior. Decidi pôr aquela camisa mesmo, enfiando-a por dentro da calça preta e lisa.
   Desci as escadas que rangiam sob meus pés correndo. Cheguei na cozinha velha e gasta, a procura de algo que pudesse se tornar meu café da manhã. Qualquer pão velho e seco serviria, mas por sorte, encontrei em um pote um restinho de café e um pão que ainda não havia estourado o prazo de validade na geladeira. Seria isso mesmo: café com um pouco de açúcar e um pedaço de pão.
   Resolvi dar uma arejada na casa enquanto esperava a água da chaleira ferver no fogão a gás que ganhei de minha mãe. Abri a janela da frente a fim de contemplar o sol nascendo, coisa que nunca tinha visto antes. Não sei por quanto tempo fiquei ali, mas voltei correndo pra cozinha ao ouvir a água chiando, avisando que fervera. Fiz rapidamente meu café e peguei o pedaço de pão e voltei pra janela: ainda tinha algum tempo. Quando olho novamente para fora, vejo uma janela se abrindo na casa em frente a minha. Dela, surge um pano sendo sacudido, provavelmente alguma toalha de mesa. A toalha é recolhida e com isso posso ver a dona das mãos que a seguram: uma mulher com um tom de pele acobreado, cabelos castanhos formando ondas, e olhos verdes que parecem abrigar uma floresta inteira. A mulher ainda não havia me visto. Não até terminar de dobrar a toalha e dar uma espiada na rua. Foi quando os olhos dela se cruzam com os meus e ela me olha tão profundamente que eu chego a ficar com uma sensação de desconforto. E então ela sorri. Fico perplexo, quem é ela, totalmente estranha para mim, para sorrir para um estranho como eu? Realmente existem pessoas sem bom senso neste mundo.
   O relógio da sala, daqueles bem antigos, soa indicando que são seis horas e trinta minutos. Droga! Precisava correr agora, para não se atrasar. Vai correndo até a cozinha, e deixa desajeitadamente a xícara dentro da pia. De noite iria se virar. Mas agora precisava ir pro trabalho, e rapidamente.
   Põe a chave na ignição e a gira. Felizmente o velho carro pegou na primeira tentativa. Apesar de ele ser um frequente visitador da oficina, ainda amava aquele carro. Era um carinho paternal, que eu não queria estragar substituindo o pobre automóvel.
   Felizmente o trânsito estava leve naquele dia. Sem congestionamentos, sem maiores problemas para chegar adiantado no trabalho.  Meia hora de percurso, meia hora antecipado.
   Aquele dia fora extenuante e extremamente cansativo. Nos últimos quinze minutos de trabalho naquela tarde, tudo o que eu queria era voltar pra casa, tomar um banho quente e dormir agarrado em minhas cobertas.
   E foi o que eu fiz. Não jantei, não analisei nenhum caso novamente, não estudei nenhuma possibilidade de enfrentar o julgamento de um caso na semana que viria.
   Meu ritual foi o mesmo nas semanas subsequentes. Acordar as quinze pras seis, tomar uma xícara de café e comer uma fatia de pão quando ele não faltava, e abrir a janela para arejar a casa, aproveitando para tomar seu café ao mesmo tempo em que observava o sol nascer.
   E sempre que fazia isso, esse que se tornara uma espécie de momento sagrado de cada manhã, ao olhar para a casa vizinha do outro lado da rua, lá estava ela: a mulher de cabelos no formato das ondas e olhos que abrigavam uma floresta inteira. E ela sempre estava com um sorriso nos lábios, encarando-o. Nunca falou palavra alguma, o que o incomodava mais. Às vezes, durante o trabalho, se pegava a observar a rua pela janela do escritório, pensando na moça e em seu sorriso. Isso lhe provocava um certo desconforto, mas passava. Logo se envolvia no trabalho e esquecia a vizinha da frente.
***
   Estava no meio da selva. Da selva de concreto, e sorria como um tonto para uma flor que encontrara subitamente no meio da rua, onde os carros passavam. No meio de toda aquela selva, aquela flor conseguira vencer e nascer. E isso me provocava uma sensação de orgulho. Orgulho da pobre flor e da garra e coragem que ela possuía, assim como eu precisava ter nos tribunais.
   Senti meu peito arder. Será que estava tendo um infarto? Será que nos meus trinta e poucos anos eu morreria, jovem e com um futuro brilhante pela frente? Não, não podia, mas era isso que eu tive certeza quando um homem encapuzado colocou um revólver em minha cabeça e me mandou entregar meus bens, todos que eu possuía. Disse que só tinha minha carteira e o relógio que era herança de minha avó. Ele disse que não importava, ele queria o que eu tinha. Entreguei a carteira e o relógio, e ele as entregou para um comparsa conferir enquanto me mantia sob vigilância. O segundo abriu a carteira, e, milagrosamente, lá haviam surgido um punhado de notas de cem reais. “Obrigado, meu Deus”, pensei, porque aquilo significava a continuação de minha vida. Ele sorriu para mim e disse que já, já, eu poderia me mandar. Agradeci. O segundo encapuzado se aproximou de mim, enquanto o outro ainda me segurava. “Posso ir?”, pedi. “Sim, pode.”, disse um dos dois, não me recordo qual. E atirou.
   Acordei suando frio, e gritando, e chamando por socorro. Aos poucos, fui percebendo que estava em meu quarto, olhando para meu roupeiro, e que aquilo, na verdade, fora um pesadelo. Apalpei meu corpo inteiro e constatei que não, eu não estava morto. Fora apenas um susto.
   Olhei para o rádio relógio. Seis horas e meia. Essa não, a bateria do celular deveria ter descarregado enquanto eu dormia. Precisava lembrar desses detalhes de vez em quando. Precisava me vestir e comer rapidamente, para que não me atrasasse. Desci correndo as escadas, indo escovar os dentes enquanto vestia e abotoava a camisa.
   Não teria tempo pra tomar café, muito menos pra comer alguma coisa. Enquanto escovava os dentes abri um pouco a janela. O sol já havia nascido, mas meu ritual não estava estragado por causa disso. Além do mais, a visão do sol já nascido era espetacular. Olhei para o outo lado da rua, e vi aquela moça, sorrindo, encantadoramente, para mim, e novamente me encarando. Nossos olhares, naquele momento, se cruzaram, e consegui sorrir também. Nunca havia percebido antes, mas os homens que passavam pela rua naquela hora da manhã, olhavam para ela, perdidamente apaixonados. E ela ali, olhando para mim, me encarando, sorrindo, tentando fazer com que eu a notasse. Meu relógio na sala de estar quebrou aquele encanto repentinamente e fez com que eu lembrasse que estava atrasado. Quinze para as sete. Precisava ir. Não podia mais olhar para a moça do outro lado da rua. Peguei meu casaco e corri para o carro.
   Cheguei cinco minutos atrasado, mas ainda tive sorte por meu chefe ainda não ter se feito presente. Comecei imediatamente a trabalhar, mas havia algo que não me deixava concentrar-me totalmente nos casos que eu analisava. Tinha uma sensação de que havia algo errado. Uma espécie de premonição. Credo! Eu devia estar ficando louco. Voltei a me concentrar no trabalho. Passaram-se uma, duas, três horas, e nada daquela sensação desaparecer. Onze horas da manhã, quase hora de meu almoço. Precisava ir imediatamente lavar a cara, essa sensação de mal-estar deveria passar com uma água fria na cara.
   Bati na sala de meu chefe e pedi se podia ir almoçar meia hora antes. Disse que não estava me sentindo bem, e que o almoço poderia me ajudar com isso, pelo fato de eu não ter comido nada pela manhã. Ele me permitiu a saída antes do horário.
   Desci com o elevador e saí do prédio em direção ao restaurante de comida por quilo onde eu sempre ia. Lá eu comia mais decentemente do que em casa. Servi-me com uma porção de tipos de carne e nada de saladas.
   Ao sentar-me na mesa de quatro lugares para comer, meu celular vibra no bolso da calça. Tiro ele e atendo com um alô visivelmente irritado. É um número desconhecido, e então pergunto pelo nome da pessoa que está falando. O homem se identifica como sendo da polícia, e diz que está em minha casa, onde houve uma morte e uma tentativa de assalto. Pede-me que eu vá até lá imediatamente. Concordei e ele desligou. Agora não conseguia mais comer de jeito nenhum. Era isso que me incomodava pela manhã.
   Paguei a conta e saí apressadamente pela porta simples do restaurante. Atravessei a rua para subir e falar com meu chefe. Expliquei a situação para ele e ele me disse que ocupasse o tempo que precisasse para resolver o problema.
   Fui para casa em uma corrida desabalada, me advertindo a cada instante por não respeitar as leis que estavam indicadas nas placas. Mas eu ansiava chegar logo no local.
   Virei a esquina da rua que eu  nem conhecia direito, apesar de morar há quase um ano ali. Já havia um pequeno aglomerado de pessoas se avolumando cada vez mais na frente da casa que era minha. Desci do carro batendo a porta, forçando minhas vistas a procurar um policial qualquer que pudesse me explicar o que acontecera.
   Um policial baixinho e atarracado com poucos cabelos grisalhos na cabeça que ameaçava ficar careca, me explicou que, pelas nove e meia, três homens encapuzados e armados tentaram roubar minha casa. ( Nessa hora lembrei que, por conta do atraso daquela manhã, esqueci de trancar a porta. Maldito despertador!) O homem continuava falando enquanto eu lembrava da porta esquecida. Pedi-lhe se era verdade que alguém havia morrido, e ele confirmou com um aceno de cabeça, parecendo comovido. Então disse-me que, na hora em que os ladrões tentavam entrar na casa pela janela, uma mulher percebeu o movimento dos bandidos e atravessou a rua correndo para tentar impedi-los. Ela morreu com uma bala cravada no coração. Os ladrões haviam fugido sem deixar rastros.
   Meu coração estava apertado, e, com uma sensação ruim na alma, perguntei a ele quem era a mulher que tentara proteger minha casa. Ele somente apontou para um canto, onde funcionários da ambulância a ajeitavam para levá-la ao necrotério. Fui até a mulher. Fosse quem fosse, eu queria agradecer a alguém, mas, infelizmente, aquela que tentara salvar minha casa havia morrido. Não havia nada que eu pudesse fazer.
   E então eu a vi e meu coração quase parou, e hoje, eu desejo que ele tivesse parado, pois na minha frente, deitada em uma maca rumo ao necrotério, estava aquela mulher que sempre me encarava do outro lado da rua, todas as manhãs. E o mais intrigante era que ela sorria. Mesmo morta, e com sangue manchando sua blusa apertada, ela sorria. Os olhos já haviam sido fechados, e eu nunca mais os veria.
   Abaixei-me. Lágrimas escorriam por meus olhos. Milhares delas. Meu coração doía como nunca antes havia doído. Se antes eu não entendia o que era o amor, agora eu tinha certeza de que ele existia. Naquele momento eu descobri que estava, há muito tempo, desde que tinha começado o ritual de abrir a janela todas as manhãs, apaixonado por aquela moça que tinha um olhar impenetrável.  Aquele olhar em que cabia uma floresta inteira. Aquele olhar que ficaria para sempre marcado em minha memória. Aquele olhar que somente tarde demais eu percebera amar. Aquela moça, que eu nem sabia o nome, dera a vida por mim. Me amara em silêncio, me encarando e sorrindo todos os dias do outro lado da rua. Ah, como o coração doía, parecia que um pedaço de mim havia sido arrancado, para sempre. Lágrimas de dor, que queimavam e ardiam, moldavam minhas faces, deixando marcado o caminho de minha dor.
   Como se me despedisse, fechei os olhos e beijei-a. Foi um beijo leve, delicado, suave, que marcava minha despedida com minha amada.
***
   Isso acontecera há 51 anos. Hoje, sou um velho que poderia ter uma meia dúzia de netos. Mas depois daquele dia, depois de perder a pessoa que eu descobri amar depois de sua partida, e que eu amava até hoje, eu nunca havia olhado para outra mulher.
   Sentado na varanda de minha casa, relembro daquela história. Relembrar se tornou meu segundo ritual de todos os dias. Ainda abria a janela todas as manhãs, onde esperava vê-la, a sorrir pra mim, a me encarar, mas é claro que isso nunca mais seria possível.
   Hoje sou aposentado, e minha carreira de advocacia nunca mais importou depois daquele dia. Relembrar a história da morte de minha amada me faz doer o coração. Mas faço isso na esperança de que eu sofra alguma espécie de infarto e eu possa, finalmente, me juntar a ela.
   Sorrio, lembrando do sorriso lindo que ela tinha, e dos olhos verdes que marcaram todos os meus melhores sonhos e meus piores pesadelos. Meus sonhos mostravam como teria sido nossa vida se eu não tivesse sido tão tolo e ignorado ela quando ela me sorria pela manhã. Mas, mostrava também uma cena que me fazia gritar e espernear enquanto dormia.  Eu sonhava ver os ladrões tentando invadir minha casa. Então ela entrava em cena e os ladrões a matavam. E eu, no sonho, ficava imóvel, não conseguindo fazer nada. Isso me angustiava e por isso eu acordava ao som de meus próprios berros.
   Amarga a minha dor. Mas, fazer o que, foi minha lição, não escolhi minha vida detalhe por detalhe.
   Olho para o outro lado da rua e vejo aquela casa que esconde os mistérios e segredos de minha amada, intacta desde o dia de sua morte. Quando ela faleceu, a família quis vender a casa, não precisava mais dela. Ele a comprou, pois não queria acordar pela manhã e deparar com um estranho na janela de sua amada.
   Mas nunca entrou na casa. Tinha a chave, mas nunca tivera coragem de entrar no lugar que era da moça que ele nunca deixara de amar. Nos seus oitenta e seis, agora, sentia uma imensa vontade de desvendar os mistérios que ela guardava para si.
   Sorriu, e decidiu-se: iria conhecer as profundezas do santuário da moça que morrera por ele.
   Abandonou a velha cadeira de balanço. Colheu, no seu jardim, uma margarida branca, simplesmente por impulso. Abriu o portão enferrujado que rangia. Estava precisando de um óleo.
***
   Atravessando lentamente a rua, ele nem percebeu o carro que vinha desordenadamente em sua direção. A dois passos da calçada, ele o acertou. O senhor idoso que aparentava estar perto dos cem anos e que segurava uma margarida na mão, morreu na hora.

   A dois metros do corpo inerte e já sem vida, atrás daquela porta detalhada em mogno, na casa que tinha uma janela grande que guardava uma floreira onde tinham margaridas brancas plantadas, estava uma carta, de sete páginas, declarando um amor ardente e sem solução, esperando o recém falecido há longos cinquenta e um anos.