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QUINZE PRIMAVERAS

Virava, uma, duas, três vezes. Admirava meu corpo esguio e belo naquele vestido de gala. Me sentia uma verdadeira princesa, naquele momento...

quinta-feira, 28 de maio de 2015

OLHAR INPENETRÁVEL

   Naquele dia eu precisava acordar cedo. Disso lembro-me como se fosse ontem, porque acordo cedo todos os dias desde aquele em que minha vida mudou por completo.
   Lembro-me, e com certa vergonha, que eu era um ser humano daqueles que se podem considerar, e com razão, arrogantes. Eu não tinha tempo pra nada e pra ninguém, tudo o que eu fazia girava em função de um único motivo: minha própria existência e felicidade. Mas acontece que eu não era feliz, parecia que sempre faltava alguma coisa em minha vida. Eu não sabia o que era, mas na época parecia ser a ascensão tão desejada na carreira de advocacia. Era meu maior e único sonho. O resto, nada importava. Eu não queria, me recusava determinantemente, a sair de casa nas noites de sábado, para ir a algumas baladinhas, como era costume de alguns amigos meus. “Você precisa se divertir”, diziam-me eles. Mas eu confesso, na época eu não gostava de ir aquelas festas consideradas por meu subconsciente como sendo hipócritas. Nos fins de semana, preocupava-me em adiantar alguns papéis e documentos da empresa, para que, quem sabe, eu pudesse conseguir uma promoção, coisa que era possível acontecer em breve, em razão, do que dissera meu chefe, “de uma dedicação de corpo e alma à nossa empresa”. Me orgulhava disso, considerava-me importante, um dos funcionários de maior destaque da “Advocacia e Cia”.
   Naquela segunda-feira pela manhã, eu começaria um novo horário na empresa. Trabalhava com um meio turno há seis anos lá, e agora, por conta de minha total dedicação e ajuda para com meus chefes e clientes, eu começaria o trabalho em tempo integral. Por isso, eu precisava levantar cedo. Não podia atrasar-me de jeito algum, ou seria o fim do avanço em minha carreira que sequer começara.
    O despertador tocou às seis horas da manhã, soando como algo que irritava facilmente meus ouvidos aguçados. Eu começaria meu turno às oito horas, mas, como poderia haver congestionamento nas ruas movimentadas daquela cidade, preferia chegar antes. Por isso, o despertador me acordou tão cedo. Levantei de um salto da cama que eu começara a pagar em dezembro do ano anterior, parcelada em doze suaves prestações, e que eu  terminaria, (felizmente!), daqui a um mês.
   Peguei apressadamente a roupa que tinha jogado, na noite anterior, em cima da poltrona feita de algum material parecido com o couro. As roupas estavam do avesso, e ainda por cima, a camisa social branca que eu reservara estava, na ponta, perto do último botão de baixo, manchada com algum tipo de molho, certamente do molho de cachorro-quente que eu jantara na noite anterior. Decidi pôr aquela camisa mesmo, enfiando-a por dentro da calça preta e lisa.
   Desci as escadas que rangiam sob meus pés correndo. Cheguei na cozinha velha e gasta, a procura de algo que pudesse se tornar meu café da manhã. Qualquer pão velho e seco serviria, mas por sorte, encontrei em um pote um restinho de café e um pão que ainda não havia estourado o prazo de validade na geladeira. Seria isso mesmo: café com um pouco de açúcar e um pedaço de pão.
   Resolvi dar uma arejada na casa enquanto esperava a água da chaleira ferver no fogão a gás que ganhei de minha mãe. Abri a janela da frente a fim de contemplar o sol nascendo, coisa que nunca tinha visto antes. Não sei por quanto tempo fiquei ali, mas voltei correndo pra cozinha ao ouvir a água chiando, avisando que fervera. Fiz rapidamente meu café e peguei o pedaço de pão e voltei pra janela: ainda tinha algum tempo. Quando olho novamente para fora, vejo uma janela se abrindo na casa em frente a minha. Dela, surge um pano sendo sacudido, provavelmente alguma toalha de mesa. A toalha é recolhida e com isso posso ver a dona das mãos que a seguram: uma mulher com um tom de pele acobreado, cabelos castanhos formando ondas, e olhos verdes que parecem abrigar uma floresta inteira. A mulher ainda não havia me visto. Não até terminar de dobrar a toalha e dar uma espiada na rua. Foi quando os olhos dela se cruzam com os meus e ela me olha tão profundamente que eu chego a ficar com uma sensação de desconforto. E então ela sorri. Fico perplexo, quem é ela, totalmente estranha para mim, para sorrir para um estranho como eu? Realmente existem pessoas sem bom senso neste mundo.
   O relógio da sala, daqueles bem antigos, soa indicando que são seis horas e trinta minutos. Droga! Precisava correr agora, para não se atrasar. Vai correndo até a cozinha, e deixa desajeitadamente a xícara dentro da pia. De noite iria se virar. Mas agora precisava ir pro trabalho, e rapidamente.
   Põe a chave na ignição e a gira. Felizmente o velho carro pegou na primeira tentativa. Apesar de ele ser um frequente visitador da oficina, ainda amava aquele carro. Era um carinho paternal, que eu não queria estragar substituindo o pobre automóvel.
   Felizmente o trânsito estava leve naquele dia. Sem congestionamentos, sem maiores problemas para chegar adiantado no trabalho.  Meia hora de percurso, meia hora antecipado.
   Aquele dia fora extenuante e extremamente cansativo. Nos últimos quinze minutos de trabalho naquela tarde, tudo o que eu queria era voltar pra casa, tomar um banho quente e dormir agarrado em minhas cobertas.
   E foi o que eu fiz. Não jantei, não analisei nenhum caso novamente, não estudei nenhuma possibilidade de enfrentar o julgamento de um caso na semana que viria.
   Meu ritual foi o mesmo nas semanas subsequentes. Acordar as quinze pras seis, tomar uma xícara de café e comer uma fatia de pão quando ele não faltava, e abrir a janela para arejar a casa, aproveitando para tomar seu café ao mesmo tempo em que observava o sol nascer.
   E sempre que fazia isso, esse que se tornara uma espécie de momento sagrado de cada manhã, ao olhar para a casa vizinha do outro lado da rua, lá estava ela: a mulher de cabelos no formato das ondas e olhos que abrigavam uma floresta inteira. E ela sempre estava com um sorriso nos lábios, encarando-o. Nunca falou palavra alguma, o que o incomodava mais. Às vezes, durante o trabalho, se pegava a observar a rua pela janela do escritório, pensando na moça e em seu sorriso. Isso lhe provocava um certo desconforto, mas passava. Logo se envolvia no trabalho e esquecia a vizinha da frente.
***
   Estava no meio da selva. Da selva de concreto, e sorria como um tonto para uma flor que encontrara subitamente no meio da rua, onde os carros passavam. No meio de toda aquela selva, aquela flor conseguira vencer e nascer. E isso me provocava uma sensação de orgulho. Orgulho da pobre flor e da garra e coragem que ela possuía, assim como eu precisava ter nos tribunais.
   Senti meu peito arder. Será que estava tendo um infarto? Será que nos meus trinta e poucos anos eu morreria, jovem e com um futuro brilhante pela frente? Não, não podia, mas era isso que eu tive certeza quando um homem encapuzado colocou um revólver em minha cabeça e me mandou entregar meus bens, todos que eu possuía. Disse que só tinha minha carteira e o relógio que era herança de minha avó. Ele disse que não importava, ele queria o que eu tinha. Entreguei a carteira e o relógio, e ele as entregou para um comparsa conferir enquanto me mantia sob vigilância. O segundo abriu a carteira, e, milagrosamente, lá haviam surgido um punhado de notas de cem reais. “Obrigado, meu Deus”, pensei, porque aquilo significava a continuação de minha vida. Ele sorriu para mim e disse que já, já, eu poderia me mandar. Agradeci. O segundo encapuzado se aproximou de mim, enquanto o outro ainda me segurava. “Posso ir?”, pedi. “Sim, pode.”, disse um dos dois, não me recordo qual. E atirou.
   Acordei suando frio, e gritando, e chamando por socorro. Aos poucos, fui percebendo que estava em meu quarto, olhando para meu roupeiro, e que aquilo, na verdade, fora um pesadelo. Apalpei meu corpo inteiro e constatei que não, eu não estava morto. Fora apenas um susto.
   Olhei para o rádio relógio. Seis horas e meia. Essa não, a bateria do celular deveria ter descarregado enquanto eu dormia. Precisava lembrar desses detalhes de vez em quando. Precisava me vestir e comer rapidamente, para que não me atrasasse. Desci correndo as escadas, indo escovar os dentes enquanto vestia e abotoava a camisa.
   Não teria tempo pra tomar café, muito menos pra comer alguma coisa. Enquanto escovava os dentes abri um pouco a janela. O sol já havia nascido, mas meu ritual não estava estragado por causa disso. Além do mais, a visão do sol já nascido era espetacular. Olhei para o outo lado da rua, e vi aquela moça, sorrindo, encantadoramente, para mim, e novamente me encarando. Nossos olhares, naquele momento, se cruzaram, e consegui sorrir também. Nunca havia percebido antes, mas os homens que passavam pela rua naquela hora da manhã, olhavam para ela, perdidamente apaixonados. E ela ali, olhando para mim, me encarando, sorrindo, tentando fazer com que eu a notasse. Meu relógio na sala de estar quebrou aquele encanto repentinamente e fez com que eu lembrasse que estava atrasado. Quinze para as sete. Precisava ir. Não podia mais olhar para a moça do outro lado da rua. Peguei meu casaco e corri para o carro.
   Cheguei cinco minutos atrasado, mas ainda tive sorte por meu chefe ainda não ter se feito presente. Comecei imediatamente a trabalhar, mas havia algo que não me deixava concentrar-me totalmente nos casos que eu analisava. Tinha uma sensação de que havia algo errado. Uma espécie de premonição. Credo! Eu devia estar ficando louco. Voltei a me concentrar no trabalho. Passaram-se uma, duas, três horas, e nada daquela sensação desaparecer. Onze horas da manhã, quase hora de meu almoço. Precisava ir imediatamente lavar a cara, essa sensação de mal-estar deveria passar com uma água fria na cara.
   Bati na sala de meu chefe e pedi se podia ir almoçar meia hora antes. Disse que não estava me sentindo bem, e que o almoço poderia me ajudar com isso, pelo fato de eu não ter comido nada pela manhã. Ele me permitiu a saída antes do horário.
   Desci com o elevador e saí do prédio em direção ao restaurante de comida por quilo onde eu sempre ia. Lá eu comia mais decentemente do que em casa. Servi-me com uma porção de tipos de carne e nada de saladas.
   Ao sentar-me na mesa de quatro lugares para comer, meu celular vibra no bolso da calça. Tiro ele e atendo com um alô visivelmente irritado. É um número desconhecido, e então pergunto pelo nome da pessoa que está falando. O homem se identifica como sendo da polícia, e diz que está em minha casa, onde houve uma morte e uma tentativa de assalto. Pede-me que eu vá até lá imediatamente. Concordei e ele desligou. Agora não conseguia mais comer de jeito nenhum. Era isso que me incomodava pela manhã.
   Paguei a conta e saí apressadamente pela porta simples do restaurante. Atravessei a rua para subir e falar com meu chefe. Expliquei a situação para ele e ele me disse que ocupasse o tempo que precisasse para resolver o problema.
   Fui para casa em uma corrida desabalada, me advertindo a cada instante por não respeitar as leis que estavam indicadas nas placas. Mas eu ansiava chegar logo no local.
   Virei a esquina da rua que eu  nem conhecia direito, apesar de morar há quase um ano ali. Já havia um pequeno aglomerado de pessoas se avolumando cada vez mais na frente da casa que era minha. Desci do carro batendo a porta, forçando minhas vistas a procurar um policial qualquer que pudesse me explicar o que acontecera.
   Um policial baixinho e atarracado com poucos cabelos grisalhos na cabeça que ameaçava ficar careca, me explicou que, pelas nove e meia, três homens encapuzados e armados tentaram roubar minha casa. ( Nessa hora lembrei que, por conta do atraso daquela manhã, esqueci de trancar a porta. Maldito despertador!) O homem continuava falando enquanto eu lembrava da porta esquecida. Pedi-lhe se era verdade que alguém havia morrido, e ele confirmou com um aceno de cabeça, parecendo comovido. Então disse-me que, na hora em que os ladrões tentavam entrar na casa pela janela, uma mulher percebeu o movimento dos bandidos e atravessou a rua correndo para tentar impedi-los. Ela morreu com uma bala cravada no coração. Os ladrões haviam fugido sem deixar rastros.
   Meu coração estava apertado, e, com uma sensação ruim na alma, perguntei a ele quem era a mulher que tentara proteger minha casa. Ele somente apontou para um canto, onde funcionários da ambulância a ajeitavam para levá-la ao necrotério. Fui até a mulher. Fosse quem fosse, eu queria agradecer a alguém, mas, infelizmente, aquela que tentara salvar minha casa havia morrido. Não havia nada que eu pudesse fazer.
   E então eu a vi e meu coração quase parou, e hoje, eu desejo que ele tivesse parado, pois na minha frente, deitada em uma maca rumo ao necrotério, estava aquela mulher que sempre me encarava do outro lado da rua, todas as manhãs. E o mais intrigante era que ela sorria. Mesmo morta, e com sangue manchando sua blusa apertada, ela sorria. Os olhos já haviam sido fechados, e eu nunca mais os veria.
   Abaixei-me. Lágrimas escorriam por meus olhos. Milhares delas. Meu coração doía como nunca antes havia doído. Se antes eu não entendia o que era o amor, agora eu tinha certeza de que ele existia. Naquele momento eu descobri que estava, há muito tempo, desde que tinha começado o ritual de abrir a janela todas as manhãs, apaixonado por aquela moça que tinha um olhar impenetrável.  Aquele olhar em que cabia uma floresta inteira. Aquele olhar que ficaria para sempre marcado em minha memória. Aquele olhar que somente tarde demais eu percebera amar. Aquela moça, que eu nem sabia o nome, dera a vida por mim. Me amara em silêncio, me encarando e sorrindo todos os dias do outro lado da rua. Ah, como o coração doía, parecia que um pedaço de mim havia sido arrancado, para sempre. Lágrimas de dor, que queimavam e ardiam, moldavam minhas faces, deixando marcado o caminho de minha dor.
   Como se me despedisse, fechei os olhos e beijei-a. Foi um beijo leve, delicado, suave, que marcava minha despedida com minha amada.
***
   Isso acontecera há 51 anos. Hoje, sou um velho que poderia ter uma meia dúzia de netos. Mas depois daquele dia, depois de perder a pessoa que eu descobri amar depois de sua partida, e que eu amava até hoje, eu nunca havia olhado para outra mulher.
   Sentado na varanda de minha casa, relembro daquela história. Relembrar se tornou meu segundo ritual de todos os dias. Ainda abria a janela todas as manhãs, onde esperava vê-la, a sorrir pra mim, a me encarar, mas é claro que isso nunca mais seria possível.
   Hoje sou aposentado, e minha carreira de advocacia nunca mais importou depois daquele dia. Relembrar a história da morte de minha amada me faz doer o coração. Mas faço isso na esperança de que eu sofra alguma espécie de infarto e eu possa, finalmente, me juntar a ela.
   Sorrio, lembrando do sorriso lindo que ela tinha, e dos olhos verdes que marcaram todos os meus melhores sonhos e meus piores pesadelos. Meus sonhos mostravam como teria sido nossa vida se eu não tivesse sido tão tolo e ignorado ela quando ela me sorria pela manhã. Mas, mostrava também uma cena que me fazia gritar e espernear enquanto dormia.  Eu sonhava ver os ladrões tentando invadir minha casa. Então ela entrava em cena e os ladrões a matavam. E eu, no sonho, ficava imóvel, não conseguindo fazer nada. Isso me angustiava e por isso eu acordava ao som de meus próprios berros.
   Amarga a minha dor. Mas, fazer o que, foi minha lição, não escolhi minha vida detalhe por detalhe.
   Olho para o outro lado da rua e vejo aquela casa que esconde os mistérios e segredos de minha amada, intacta desde o dia de sua morte. Quando ela faleceu, a família quis vender a casa, não precisava mais dela. Ele a comprou, pois não queria acordar pela manhã e deparar com um estranho na janela de sua amada.
   Mas nunca entrou na casa. Tinha a chave, mas nunca tivera coragem de entrar no lugar que era da moça que ele nunca deixara de amar. Nos seus oitenta e seis, agora, sentia uma imensa vontade de desvendar os mistérios que ela guardava para si.
   Sorriu, e decidiu-se: iria conhecer as profundezas do santuário da moça que morrera por ele.
   Abandonou a velha cadeira de balanço. Colheu, no seu jardim, uma margarida branca, simplesmente por impulso. Abriu o portão enferrujado que rangia. Estava precisando de um óleo.
***
   Atravessando lentamente a rua, ele nem percebeu o carro que vinha desordenadamente em sua direção. A dois passos da calçada, ele o acertou. O senhor idoso que aparentava estar perto dos cem anos e que segurava uma margarida na mão, morreu na hora.

   A dois metros do corpo inerte e já sem vida, atrás daquela porta detalhada em mogno, na casa que tinha uma janela grande que guardava uma floreira onde tinham margaridas brancas plantadas, estava uma carta, de sete páginas, declarando um amor ardente e sem solução, esperando o recém falecido há longos cinquenta e um anos.

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