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QUINZE PRIMAVERAS

Virava, uma, duas, três vezes. Admirava meu corpo esguio e belo naquele vestido de gala. Me sentia uma verdadeira princesa, naquele momento...

quinta-feira, 21 de maio de 2015

A TEMPESTADE

O céu estava claro, límpido. Havia umas poucas nuvens, mas estas iam embora com o vento calmo que soprava as últimas folhas secas do outono. O sol, que antes brilhava forte, impondo respeito, agora parecia tímido, como criança assustada por causa de filme de terror. O parquinho era ocupado por crianças barulhentas, que sustentavam sua felicidade por meio dos brinquedos velhos e já gastos, dispostos aleatoriamente pela dimensão do parque. Algumas delas, já suadas, corriam umas atrás das outras, não se preocupando com o calor que isso provocava. Outras, mais calmas, brincavam na areia, ocupando pás e baldes de plástico para construir castelos, que depois eram pisados por pés pequenos, sendo reduzidos a montes de areia que provocavam risadas gostosas naquelas bocas pequenas. Viam-se pássaros nas árvores, preocupados em cuidar de seus filhotes recém-nascidos. As flores, que nasciam aos montes, coloriam com os mais belos tons aquele parque que no inverno não tivera vida. Nos bancos de madeira dispostos na sombra das árvores, viam-se pais, ocupados em conversas sobre política e economia, outros lendo jornais ou revistas, mas sem tirar os olhos daquelas criaturinhas sapecas. O movimento do parque aumentava à medida que o sol subia no céu, ao mesmo tempo em que a intensidade da alegria e dos risos provocados pelas crianças preenchia o ambiente. Tudo naquele parque parecia perfeito. Uma imagem digna de uma verdadeira pintura, daquelas em que se sente a energia e os sentimentos somente de olhar para a imagem. Daquelas pinturas que captam sorrisos, de crianças correndo, com seus cabelos ao vento, conversas aleatórias, sem esquecer dos cachorros com a língua de fora. Daquelas pinturas que se pode ficar observando, sem cansar os olhos e a alma, e que, no inconsciente, faz surgir nos lábios de qualquer pessoa um sorriso gostoso, um turbilhão de sentimentos e memórias que é causado pela imagem que retrata o cotidiano de quem a vê.
   O dia, que já estava pela metade, poderia ter sido um dia normal, como todos os outros, se não fosse por algo que com toda certeza surpreendeu a todos. Aquele céu, sem nuvens, que ora fora limpo e azul, tinha escurecido de repente, sem avisar de sua súbita mudança de humor. As crianças, que antes brincavam sem preocupação, agora olhavam para cima, como que procurando a claridade novamente. O sorriso que antes existia em seus lábios pequenos, agora dava lugar às lágrimas pela diversão que lhes fora interrompida. Os adultos, em suas conversas sobre assuntos da atualidade, ficaram surpresos e chocados por aquele manto negro que cobria o céu acima de suas cabeças. Com toda certeza, viria tempestade. Das fortes, e ela não demoraria a chegar. Era preciso se apressar para que não fossem atingidos por ela em pleno ar livre.
   Então, recomeçou a correria no parque, mas desta vez, não eram as brincadeiras e a felicidade infantil que movimentavam o ambiente, mas a preocupação dos pais que procuravam seus filhos desesperadamente. Queriam vê-los, abraçá-los, para poder pegá-los no colo, beijar suas testas pequenas e então correr com eles para um lugar seguro. Queriam salvar suas pequenas crianças que só queriam um pouco de diversão. Se aquela tempestade pudesse ter esperado até a noite, com toda certeza eles estariam a salvo sob os tetos de suas casas, não tão assustados quanto agora, na presença de algum tipo de fenômeno natural que prometia deixar estragos. Poderia até deixar estragos na cidade, no parque, nas casas, mas não podiam deixar estragos em suas crianças.
   Cada pai ou mãe, largou as revistas ou jornais no chão, e começaram a correr e chamar por seus pequeninos. As crianças, sem qualquer ação pelo susto que levaram, muitas vezes não escutavam seus pais quando estes chamavam seu nome. Então, os pais precisavam correr pelo parque, olhando o rosto de cada criança que pelas costas parecia com seu filho. O parque estava numa confusão geral. Os pais, já desesperados, gritavam por seus filhos. Já os filhos, assustados com a súbita mudança climática, com a correria e a gritaria, choravam e soluçavam por não encontrarem seus pais. O caos estava estabelecido, mas as crianças e seus pais precisavam ir para baixo de um telhado, ou seriam atingidos pela tempestade que já ameaçava destruição por onde passasse.
   Então, um pai achou seu filho, e correu para baixo da lojinha da esquina. Estava a salvo com seu pequenino, ou pelo menos achava que estava. Agora, era só ficar ali, esperando a tempestade passar. Mas a correria que ainda se via no parque o perturbava e o fazia questionar-se: E se fosse eu que não achasse meu filho no meio de tantas crianças? E se meu pequeno ainda estivesse no meio do parque? E se eu não o tivesse encontrado? Isso o pressionava e o deixava aflito. Por fim, decidiu ajudar os pais desesperados e recomendou ao filho que ficasse junto com a recepcionista do bar ao lado.
   Correu para o meio da confusão geral, e assim que viu uma mãe assustada, perguntou-lhe qual era a aparência de seu filho. Ela, por fim, desesperada, lhe respondeu: “Minha filha tem sete anos. Está usando um vestidinho cor-de-rosa, pés descalços, é loira e usa uma tiara nos cabelos encaracolados. Se puder achá-la para mim, por favor, eu lhe agradeço muito.” O jovem pai assentiu, e se apiedou do coração daquela mulher que não achava sua filha. Começou a procurar pela menininha, por todos os cantos, lados, embaixo dos brinquedos, escorregas, árvores, bancos. Nada. Nenhum sinal da menina. Começou a perguntar aos pais se a tinham visto, mas estes estavam ocupados demais tentando achar seus próprios filhos. Já começava a sentir o desespero de não achar a menininha. Queria poder ajudar, mas podia muito bem estar somente atrapalhando. Não queria desistir, de jeito nenhum. Só precisava sentar um pouco para recobrar o fôlego. Caminhou até o próximo banco, e quando ia se sentar, foi que a viu: loira, vestidinho cor-de-rosa, pés descalços, aflita, o rosto vermelho por causa do choro. Então foi até ela, e lhe disse que conhecia sua mãe. A menininha sorriu e disse: “Mamãe. Cadê?”. O homem, com um sorriso nos lábios, o coração já mais leve, somente lhe respondeu: “Vou te levar até sua mãe”. A menina agarrou sua mão, e saiu saltitando com o homem, feliz porque ia ver sua mãe de novo. Ela parecia uma verdadeira boneca, os cabelos encaracolados balançando de um lado pro outro enquanto ela pulava, agarrada à mão do homem que dizia conhecer sua mãe. Como as crianças eram ingênuas. Doces, acreditavam piamente em cada palavra que os adultos lhe proferiam. Se quisesse, poderia levar essa menina para si, dizer à sua mãe que não a havia encontrado, e levá-la para casa para ser como uma irmãzinha para seu filho. Mas não faria isso. Acreditava que a menina seria infeliz sem a mãe, assim como ele seria infeliz sem o filho. Além disso, aquela pobre mãe já tinha sofrido o bastante para um dia só.
   Abriu caminho entre as pessoas, pedindo licença aqui, ali, até chegar ao lugar em que havia encontrado a mulher aflita. Ela ainda estava lá, sentada num banco, chorando, desesperada, achando ter perdido a filinha amada. A menininha, que antes agarrava firme a mão do homem, largou-a assim que viu a mãe, e saiu correndo ao seu encontro. “Mamãe”, ela gritou, enquanto corria em passadas pequenas o pouco espaço que as separava. A mulher ergueu a cabeça, e, vendo a filha, sorriu de uma orelha à outra. Abraçou-a , beijou sua testa, sorriu, chorou de felicidade. E somente então, viu o homem parado, que observava a cena com um sorriso nos lábios. Encaminhou-se a ele, e lhe agradeceu sem parar pelo bem que havia feito para sua filha e a si mesma.
   Ficaram em silêncio, um encarando o outro, mas foram interrompidos pelo barulho ensurdecedor de um trovão. Estava na hora de procurar abrigo. Nesse meio tempo em que se encaravam, como que se agradecendo mutuamente, não perceberam que o parque havia se esvaziado, deixando o ambiente com uma atmosfera carregada. As pessoas haviam se abrigado embaixo dos telhados dos barzinhos, das farmácias e lojas que haviam na avenida. O interior dos estabelecimentos estava abarrotado de gente. Algumas, que estavam mais perto da rua, gritavam para eles, dizendo para correr, se abrigar embaixo de telhado, pois a tempestade não esperaria eles encontrarem abrigo. Então, depois de mais um sorriso, a mulher pegou a filha no colo, olhou o outro, e com um sinal afirmativo de cabeça por parte de ambos, correram quando os primeiros pingos de chuva forte caíam na terra.
   Um pouco molhados, chegaram a tempo no telhado de uma loja que vendia artigos de beleza e roupas fora da moda. A chuva e a tempestade estava apenas começando. Os raios não demorariam a chegar. Parecia que viriam pedras, ou talvez vento. Não se sabia ao certo qual a duração, mas seria uma tempestade de grandes proporções. Então, o homem se lembrou de seu filho. Estava no barzinho da esquina, provavelmente se divertindo com a vendedora. Iria até lá para ver como ele estava e trazê-lo perto de si. Disse à mulher que já voltava, e ela somente fez um sinal afirmativo com a cabeça, ainda abraçada à filha.
   Caminhou entre as pessoas, contornando lixeiras, pedindo passagem, recebendo reclamações e palavrões em resposta. Percorreu uma quadra por baixo dos telhados das lojinhas até chegar ao barzinho da esquina, daqueles enfeitados com dizeres coloridos, de néon, que chamavam a atenção à noite. Abriu a porta e entrou, ao mesmo tempo em que soava um sininho anunciando sua chegada. Assim que lhe viu, a garçonete sorriu e apontou um canto do estabelecimento, onde seu filho rabiscava nervoso em algumas folhas de papel. O menino parou, chateado, e parecia querer sair do lugar em que estava, quando viu o pai, parado na porta, o observando. Sorriu, de um canto da orelha até a outra, e veio correndo na direção de seus braços. “ Papai, você demorou”, disse o menino de 10 anos que parecia ter mais. O homem somente sorriu, e abraçou novamente o filho. “Pai, nós vamos pra casa agora?”. “Não filho, a gente precisa esperar a tempestade passar”. Isso pareceu desanimá-lo, o sorriso que antes ocupava a face deu lugar a uma cara de tristeza. Então, o homem foi até o balcão, e pediu para a garçonete um sorvete de chocolate, de duas camadas, e com muita cobertura em cima. Assim que viu o sorvete, o menino sorriu: “Acho que posso esperar”. A moça sorriu da doçura do menino, e respondeu ao pai quando este lhe perguntou como o menino se portara: “Maravilhosamente bem”. O pai então lhe agradeceu, e pediu quanto lhe devia, ao que ela simplesmente negou com um aceno de cabeça.
   Ao sair do barzinho, o menino lhe perguntou porque havia demorado tanto. “Fui achar uma menina perdida, filho”. “Ah, como um  super-herói?”. “É filho, como um super-herói”, respondeu-lhe o pai, com um sorriso nos lábios, lembrando da felicidade da mulher ao ver sua filha novamente.
   “Quer conhecer a menina, filho?”. “Quero sim, pai, quando?”. “Agora.” “Sério, e onde ela tá?”. “Lá, na esquina da rua.” O menino fez menção de sair correndo, mas não saiu do lugar, pois a mão do pai segurava firmemente a sua pequena mão de criança.
   Calmamente, tentando controlar a ansiedade do filho, eles percorreram, embaixo dos telhados que os protegiam, o caminho que os levaria até a mulher e a menina que ele salvara naquela tarde. A chuva caía forte, em pingos grossos, daqueles que fariam arder se tocassem a pele. A tempestade poderia passar se continuasse a chover por mais alguns minutos.
   Finalmente, ao passar pela farmácia, chegaram à vitrine da loja de roupas e artigos de beleza, e lá estavam elas: a mulher e a menina. Ambas sorriram quando viram o homem, e a menina veio correndo lhe dar um abraço. Isso o emocionou, mais do que queria que emocionasse. A pequenina parou na frente de seu filho, com um olhar indagador no rostinho inocente. “Meu filho”, o homem apresentou. A menina sorriu, e logo indagou ao menino: “Quer brincar?”, no que ele assentiu com um gesto de cabeça. “Só fiquem por perto”, recomendou a mãe da garotinha. As crianças nem escutaram. Já estavam olhando as vitrines e gargalhando. Os adultos então, engataram numa conversa um pouco mais séria:
   - Realmente, te agradeço por ter achado minha filha. Lhe sou eternamente grata.
   - Não há o que agradecer. A propósito, meu nome é Lucas.
   - Susan. Que idade tem seu filho?
   - 10 anos.
   - Não precisa ligar para sua esposa? Ela deve estar preocupada.
   - Ela já não vive mais para preocupar-se.
   - Ai, meu Deus, eu não queria...
   - Não, não tem problema, já faz tempo.
   - Ah, meu Deus, eu não acredito! Olhe! – e apontou para o parque, para onde as crianças corriam de mãos dadas.
   Lucas não esperou duas vezes, saiu numa corrida desabalada em direção às crianças. Então, num súbito impulso, olhou para o céu. Um raio vinha na direção de seu filho e da menina de Susan. Ele tinha que chegar a tempo de tirá-los de lá, ou nunca conseguiria se perdoar. Aos passos longos, mergulhou na direção das crianças, e as abraçou, caindo juntamente com elas no chão, no exato momento em que o raio o atingiu nas costas. A dor era insuportável. Sentiu um forte cheiro de carne queimada, e percebeu, pela dor lancinante, que era a sua carne. As crianças o olhavam assustadas, mas estavam bem, com somente alguns arranhões da queda. Não aguentaria por muito tempo, isso ele sentia. Sua mente ia se esvaindo para a inconsciência. Provavelmente, seu filho não teria mais pai, ficaria órfão e teria que morar com os avós. Pobre menino que o destino quis perturbar. Ele teria uma vida sem pais, mas pelo menos teria uma vida. Lucas se orgulhava de ter sido o salvador de seu filho, que a esta hora poderia estar morto, junto com a filha de Susan. Ouviu passos, sirenes de ambulância, choro, gritos, mas não sentia nada além da dor. Aos poucos, sua alma ia deixando seu corpo, e a escuridão obrigava seus olhos a se fecharem.
***
   Abriu os olhos. Estava num quarto branco, provavelmente um hospital. Enquanto tomava consciência do lugar em que se encontrava, viu quatro olhinhos pequenos a o encararem. “Mãe, ele acordou”, disse a dona de dois dos olhos, pequena criança de cabelos loiros e encaracolados, que ele reconheceu como sendo a filha de Susan.  O outro par de olhos o lembravam de Caren, a esposa que ele perdera há cinco anos, por culpa de um câncer no estômago. Seu filho sorria para ele, totalmente feliz. “Papai, você voltou”, disse o filho. Lucas tentou levantar-se, mas a dor nas costas não permitiam tal luxo. Então lembrou-se do raio, das crianças assustadas, mas vivas, do barulho das pessoas, das sirenes, e da escuridão. Provavelmente a dor nas costas era culpa do raio. Maldito raio! Tinha que ter atravessado seu destino naquele exato momento.
   No meio de seus devaneios, ele viu mais um par de olhos juntar-se aos quatro olhos de crianças. Susan. Loira, assim como a filha, ela sorria para ele. Diante daquela imagem, de três pares de olhos e três sorrisos a o encararem, ele soube que tinha valido a pena pular na frente do raio. Que mesmo que ele tivesse morrido, sua morte teria sido a causa da sobrevivência das crianças. E isso, para ele, valia mais do que viver uma vida inteira sem seu filho. Porque agora, ele tinha mais que um filho, ele tinha uma família: uma menina que podia considerar como filha, e uma bela mulher que viveria para sempre ao seu lado. Pelo menos, o sempre que o destino permitisse.





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