Postagem em destaque

QUINZE PRIMAVERAS

Virava, uma, duas, três vezes. Admirava meu corpo esguio e belo naquele vestido de gala. Me sentia uma verdadeira princesa, naquele momento...

quarta-feira, 20 de maio de 2015

LINHAS TORTAS

A noite em breve cairia no céu, espalhando seu manto negro por entre pontinhos iluminados, belas incertezas brilhantes e aconchegantes que eram as estrelas. Com toda certeza, neste mesmo tempo em que eu iria estar chorando em minha cama, molhando com minhas lágrimas de desgosto o travesseiro macio que me servia de consolo, muitos casais estariam aproveitando a noite bonita, entretidos em admirar as estrelas e o contraste que as mesmas faziam com a escuridão da noite,  em conversar e se amar. Muitas crianças, neste momento, estariam teimando com seus pais em irem para a cama, implorando por somente mais alguns minutinhos de brincadeira. Pensar em crianças me faz chorar. Não pelo fato de serem crianças, mas, eu simplesmente amava crianças. Elas, eu imaginava na flor de minha idade, me fariam rir um dia, me fariam arrancar os cabelos, mas dariam um novo sentido à minha vida . Ah! Aquele meu sonho de ser mãe. Quando mais nova, eu acreditava piamente que este meu sonho seria real, que seria somente uma questão de tempo e concordância por parte daquele que seria meu companheiro. Agora este pensamento faziam lágrimas fortuitas aparecerem em meus olhos, lágrimas que insistiam em banhar meu rosto, fazendo arder meu coração que havia muito já não era mais inteiro.
   O fato é que o destino havia rido de meu sonho, gargalhado de minha cara, brincando com meus sentimentos a custa de minha felicidade. Quisera este mesmo destino, que por algum motivo, eu não pudesse ser mãe. Que eu carregasse dentro de meu ser, para me lembrar todos os meses, que eu era incapaz de procriar. Que eu carregava comigo, para sempre, a infertilidade que roubara minha felicidade. E que este era o mesmo motivo de meu marido ter fugido com outra. Outra que era capaz de dar herdeiros a ele, que era capaz de lhe dar uma família, coisa esta que eu não podia, mesmo querendo.
   Meu mundo caiu naquela tarde cinzenta de inverno em que, sentada na cadeira estofada do consultório, de frente para o médico, ele me trouxe aquela notícia horrenda, que faria de minha vida um torpor para se viver. Eu não queria e nem podia acreditar que aquilo estava acontecendo comigo, uma pessoa que tinha como maior desejo a maternidade. Não era justo, nem um pouco justo. Havia tantas mulheres que recusavam este presente divino, que matavam seus pequenos seres antes mesmo de estes terem oportunidade de respirar o ar puro que a natureza oferece, ou pior ainda, largavam suas criaturas pequeninas em qualquer lugar, para morrerem sozinhas e lentamente, quando não tem como se defender. Eu tinha raiva dessa incredulidade da vida, que fazia crianças saudáveis caírem em mãos de adultos errados. Que fazia pequenas vidas se acabarem por não terem outra oportunidade com pais diferentes.
   E então, o destino havia roubado meu maior sonho. Eu era imprestável. Estéril. Infértil. Não podia ter filhos. Nunca. Nunca teria filhos que seriam meus, que teriam sido gerados por meu ser, que seriam uma pequena extensão minha e daquele que havia me abandonado.
   As lágrimas agora corriam como cachoeiras por minha face, já perto do pranto que eu sabia que ainda viria. Sentada naquela cadeira do consultório onde eu atendia pacientes com problemas psicológicos, buscando soluções para os problemas dos outros, eu, depois do longo expediente que havia feito, buscava, mas não encontrava soluções para meus próprios problemas. Exercer a psicologia, buscando ajudar pessoas com problemas, desde menina eu sabia ser meu maior dom. Agora, a profissão que eu tanto amo mais servia para fazer-me esquecer meus próprios problemas. Só estar ali, no meio do consultório, oferecendo soluções para pessoas que não as conseguem encontrar sozinhas, me fazia sentir mais tranquila, obrigando-me a deixar meus problemas de lado para concentrar-me nos dos outros.
   Concentrada em meu próprio pranto e minha própria dor, eu nem havia percebido que a noite havia caído. A penumbra dela se infiltrava pela janela do consultório, a mesma que mostrava o movimento da rua lá embaixo. Há quanto tempo eu estava ali, recordando e me debulhando em lágrimas? Não sei, o tempo já não me importava mais, eu só queria que ele passasse e me levasse para debaixo da terra.
   O relógio apontava seu ponteiro para o número oito, o que queria dizer que eu estava ali desde as seis e meia, quando acabei com o atendimento diário. Estava na hora de ir para casa, mesmo que ela me fazia lembrar as noites que passei com o marido que agora não era mais meu. Para recordar minha incapacidade de realizar meu maior sonho, para poder me tornar quem eu tinha certeza de que nunca mais conseguiria ser. Mesmo assim, eu não podia ficar ali no consultório, eu ainda preferia minha casa e minha cama, onde eu poderia chorar em paz e a vontade.
   Peguei as chaves de meu carro branco, de modelo ultrapassado, mas que me servia para o ir e vir de cada dia. Juntei minhas tralhas e as enfiei na bolsa vermelha de couro, que eu odiava. Estava na hora de comprar uma bolsa nova, mesmo que custasse uma pequena fortuna. Ainda dei uma passada ligeira no banheiro, para lavar a marca de choro do rosto. Então, fechei com duas voltas de chave a porta do consultório e desci as escadas que se faziam imponentes no fim do corredor. Meu carro estava no estacionamento do prédio, no porão, o que significava que eu precisava descer mais um lance de escadas para chegar lá, pois desde o horário em que a clínica havia fechado os elevadores foram desligados.
   Aquelas escadas me mataram de cansaço. Naquela noite, eu tinha certeza, iria desabar na cama e simplesmente apagar. Ziguezagueei pelo meio dos poucos carros que ainda restavam lá, e por fim avistei meu carro, velhinho e abandonado no meio daquele mar de carros importados. Entrei e sentei no assento velho,  batendo a porta com um pouco de força demais. Pus a chave na ignição e a girei. Nada. Mais uma vez. Nada de novo. Continuei tentando, pois as vezes ele pegava somente na quarta ou quinta tentativa. Na sexta, ainda não havia pego o motor. Nenhum sinal de vida. Parece mesmo que a última ida à oficina nada havia resolvido. Lembrei então que tinha gravado o número do celular do mecânico na minha agenda do smartphone. Localizei-o e coloquei pra chamar. Sem sinal. Parecia que meu dia havia nascido pra ser ruim. Tentei mais uma vez. Chamava, mas ninguém atendia. Decidi esperar mais uns dez minutos para tentar de novo, quem sabe estaria ocupado.
   Quando tentei mais uma vez, finalmente o mecânico atendeu. E quando lhe pedi se poderia resolver o problema para mim, ele me disse ser impossível, pois estava neste mesmo momento esperando a mulher dele entrar na sala de cirurgia para ter um bebê. Ia ser pai, disse com orgulho. Eu respondi-lhe dizendo que compreendia, e desliguei. As lágrimas corriam por meus olhos, irreprimíveis. Precisava encontrar uma solução. Quem sabe um outro mecânico, afinal, havia tantos na cidade. Tentei a lista telefônica, mas não achei nenhum contato que me servisse para este fim. Não poderia pegar um táxi, pois os taxistas estavam fazendo greve na praça principal. E eram nove quadras de distância até meu apartamento. Não estava nem um pouco a fim de caminhar, mas era o jeito e a solução. Ou eu caminhava, ou eu dormia no consultório. Eu poderia muito bem dormir no consultório, mas era sexta-feira e nos sábados eu não atendia. Então, peguei minha bolsa, tranquei o carro e saí pelos fundos do estacionamento.
   Mal havia caminhado três quadras e minhas pernas já reclamavam de dor e cansaço, mas precisava continuar. Poderia parar no barzinho da esquina para um lanche e um café, mas o dinheiro já estava apertado e eu queria tanto comprar uma bolsa nova, além de não saber qual seria o custo da manutenção do meu velho companheiro branco e enferrujado. Com certeza, o carro sairia caro, pelo fato de ser um modelo antigo e com peças já raras no mercado. Fazer o que, dinheiro pra um carro novo é que eu não tinha mesmo.
   Continuei meu percurso, mas parei na esquina da rua em que se viam as melhores vitrines de bolsas que havia na cidade. Se eu fosse dar uma olhadinha, eu teria que pegar outro caminho, o que resultaria em uma quadra a mais para caminhar. Quase desisti, mas pensei que, se eu estava a pé, porque não? Não sabia quando cruzaria por ali novamente.
   Fui passando pelas vitrines, admirando as centenas de opções que me dariam dor de cabeça, por seu preço e variação, principalmente, por ser muita coisa pra pouco dinheiro. Estava encantada com um modelo em especial, uma bolsa de tamanho médio, de couro tratado, marrom e com alças grossas. Com certeza, custaria uma pequena fortuna, a qual eu não podia me dar o luxo de gastar no momento. Mas um dia, com certeza um dia, eu teria uma bolsa igual aquela.
   Estava pronta para continuar meu percurso, onde iria me lamentar por ter feito a escolha boba de andar uma quadra a mais, somente para olhar algo que eu não podia comprar, quando senti cheiro de fumaça. Primeiro achei estar sonhando, mas o cheiro ficava mais intenso a medida que eu o ia percebendo. Na rua em que eu estava não havia nada queimando. Olhei ao redor, nada. Então, vi a fumaça negra se erguendo no céu, quase imperceptível pela escuridão da noite, a uma quadra de onde eu me encontrava, no caminho em que eu seguia anteriormente. Pensei em seguir meu caminho, pois já era tarde, e isso era problema dos bombeiros, mas a curiosidade falou mais alto.
   Caminhei quase correndo, virando quadras e esquinas, quase como se fizesse curvas com carros de corrida, esbarrando nas poucas pessoas que passeavam na rua quase deserta. E então, cheguei no local. Havia um pequeno grupo de curiosos a uns dez metros do local, protegido com fitas para as pessoas não chegarem perto demais. Era uma casa de dois andares, imponente, uma construção antiga, mas com certeza de alto valor. A meu ver, a casa não estava pegando fogo a muito tempo, pois os bombeiros, com suas sirenes ligadas, estavam apenas chegando no local, abrindo espaço entre a pequena multidão que ia se formando. Pegaram suas mangueiras e começaram a tentativa de combate às chamas, que se alastravam com cada vez mais rapidez. As pessoas cochichavam, conversavam, tiravam fotos e já havia inclusive algumas emissoras de televisão vindo dar cobertura no local.
   O clima estava tenso, e os bombeiros não estavam conseguindo dar conta do recado. Cogitei ir embora, para chorar em meu travesseiro, com minha solidão, mas houve algo que me impediu de levar essa ideia adiante. Um choro de criança. De uma criança recém-nascida,  mais precisamente. Primeiro achei que alguma mãe descuidada não estava dando a atenção necessária a sua criança, dirigindo-a ao incêndio. Mas era um choro de desespero. E percebi, depois que vi mais rostos assustados olhando para dentro da casa, que o bebê estava dentro do prédio. Eu não acreditava. Alguém precisava tirar aquela criança de dentro do prédio. Não podiam deixá-la morrer lá dentro, consumida pelas chamas. Tentei falar com um dos bombeiros, mas este me disse que precisavam primeiro combater as chamas, não dando ouvidos as minhas súplicas.
   Eu não podia ficar ali parada sem fazer nada. Eu não deixaria aquela criança morrer. Sem pensar duas vezes, arranquei em disparada na direção da casa e das chamas, ignorando os gritos de pessoas e a dor de minhas pernas.
   Senti o calor imediatamente, no momento em que entrei pela porta da casa. Logo na sala de entrada, chamuscados pelo fogo que os engolia, havia dois corpos. Ainda se podia identificar a silhueta de um homem e de uma mulher. Os pais da criança. Mortos.
   Dentro da residência, no meio da intensidade das chamas, se podia distinguir com ainda mais angústia o choro de desespero do bebê. Vinha do andar de cima. Subi correndo as escadas que ameaçavam cair a qualquer momento. No fim do último degrau, encontrei um corredor. O choro era mais forte no fim deste. Corri com ainda mais pressa até lá, até a porta do quarto que guardava o desespero da criança. A porta estava trancada. Droga. Reuni toda a minha força e dei um chute na porta. O choro da criança aumentou e a porta não cedeu. Foram necessários mais dois chutes, estes com uma força que eu não sabia possuir, para que a porta enfim caísse com um estrondo no chão.
   O quarto da criança estava em chamas pela metade. O armário e a janela já não podiam mais serem distinguidos como o que eram antes. O berço em que se encontrava o bebê estava a uns três metros do armário, de onde seria insuportável um adulto ficar sem sentir a intensidade do calor. Corri para o berço e peguei a criança. Uma menina, de mais ou menos quatro meses. O tempo em que eu sabia da minha infertilidade.
   Cobri ela com a manta que havia no berço, e a apoiei contra meu peito. Saí do quarto em chamas praticamente voando, atravessei o corredor e desci as escadas, que se desmancharam depois que meus pés deixavam um degrau para trás. Ao chegar ao fim da escada, eu vi o teto da casa, o mesmo teto sob o qual eu parei quando vi os pais do bebê que agora segurava em meus braços. Ele estava em chamas. Cairia a qualquer momento. Ninguém cruzaria por sob esse teto, pois com certeza ele desabaria quando um peso maior passasse por baixo dele. Mas eu precisava passar por ali. Não conhecia as outras saídas da casa, e sobretudo, não tinha tempo para procurar. Era passar ou ficar. Correr ou morrer.
   Apertei com força a criança contra meu peito, mesmo que esta soluçasse em meus braços, e corri. Reuni toda a coragem que ainda em restava e enfrentei aquele teto que desabou um milésimo de segundo depois de minha passagem. Mais um pouco e eu estaria fora da casa. Minhas pernas parece que tiraram força de meu cansaço, e correram como nunca haviam corrido.
   Passei como um avião pela porta, para ser recebida por uma multidão que agora me aplaudia. 

   Então também sorri, apesar de ter presenciado a morte de duas pessoas que me pareciam como uma família agora que eu segurava a pequena extensão deles em meus braços. Percebi que naquela noite, mesmo que eu estivesse coberta de fuligem, eu havia ganho um presente. A menina que eu salvara, dali por diante, seria minha filha. A filha que eu não era capaz de gerar, mas que eu consideraria como se fosse. Antes eu questionava a escolha que Deus fizera para mim, mas agora eu sabia que no meu caso, ele somente havia escrito certo por linhas tortas.

2 comentários:

Deixe aqui sua opinião sobre o que acabou de ler :D (<3)