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QUINZE PRIMAVERAS

Virava, uma, duas, três vezes. Admirava meu corpo esguio e belo naquele vestido de gala. Me sentia uma verdadeira princesa, naquele momento...

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

QUINZE PRIMAVERAS

Virava, uma, duas, três vezes. Admirava meu corpo esguio e belo naquele vestido de gala. Me sentia uma verdadeira princesa, naquele momento que me foi propiciado e no qual eu tinha a sensação de ser mesmo personagem de conto de fadas. Me achei tão linda dentro da seda azul que a escolhi para ser o chamativo principal de minha festa de quinze anos. Meu baile de debutante. Por minha família ser rica, eu iria ter uma festa só pra mim, em que a personagem principal serei eu. A festa, minha noite de princesa, de conto de fadas, será daqui a duas semanas. Hoje, vim provar meu vestido. Sinto vontade de acelerar o tempo para que o dia chegue logo. Dizem meus pais, que estarei a completar quinze primaveras, mas acho que isso não é tão importante assim. Minha idade, sei lá, acho que não importa. Eu poderia fazer uma festa pra comemorar minhas dezesseis primaveras, ou as dezessete. Mas não, costume de famílias tradicionais, as tão esperadas quinze primaveras. Quero a festa, sim, mas ao mesmo tempo não quero. Tenho tantas amigas com posição social quase opostas à minha, que não tem nada, e elas nunca terão uma festa de quinze anos como meus pais insistem em fazer para celebrar meu aniversário. Gosto de ser o centro das atenções, de ganhar presentes, mas ao mesmo tempo, que importância isso tem?
   Lembro que estou novamente sonhando acordada quando a vendedora da loja me pergunta se levarei o vestido. Lhe digo que sim, e passo o cartão na maquininha estranha que eles tem lá para pagar uma pequena fortuna pela seda azul que cobrirá meu corpo daqui a duas semanas. Ela põe o vestido numa sacola, dobrado e embalado cuidadosamente. Saio da loja, sozinha, como sempre. Meus pais acham que já sou responsável por mim mesma, mas a verdade é que sinto falta da preocupação deles.
   Preciso atravessar a rua para ir em direção à casa de Camila, onde irei mostrar meu vestido à ela, esperando sua aprovação. O sinal está vermelho para os pedestres, e preciso esperar. Me ponho a pensar no grande dia. Um sonho de menina se realizando. Entro no grande salão repleto de convidados, entre os quais, amigos, família e pessoas importantes da convivência de meu pai que sequer sei quem são. Meu pai pega minha mão e me puxa para uma valsa.
   O sinal para pedestres abre, e eu me ponho a caminhar no meio da rua, vagarosamente, vivendo a valsa dançada com meu pai como se ela estivesse ocorrendo no momento.
   A valsa chega ao fim, e eu sou atingida por algo que imagino ser um automóvel. Grito, e sinto algo quente banhar minha cabeça e minhas roupas, bem como o embrulho que guarda o vestido. Passo a mão na cabeça. É algo quente e parece ser um líquido. Sangue, muito sangue saindo de minha cabeça. Minha visão começa a embaçar, meu coração perde o ritmo. Já não há mais forças pra gritar quando tudo escurece ao meu redor.
***
   A primeira luz da manhã cega meus olhos, que ainda se encontram fechados. Há pessoas em minha volta falando palavras que aos poucos começam a fazer sentido para minha mente embaralhada. Uma voz aconchegante começa a falar em um tom mais urgente, o que me faz ficar imóvel para que não parem de falar se descobrirem que estou acordada.
   - Qual é o quadro dela, doutor? – pergunta meu pai, preocupado.
   - Ela já não apresenta piora, o que já é um bom sinal. E saiu do coma, o que indica que a situação dificilmente se agravará. – responde uma voz que não consigo reconhecer.
   “Quer dizer então que estive em coma” – pensei com meus botões.
   - Ela poderá realizar a festa, doutor?
   - Por poder pode, mas eu recomendo um período de descanso até que ela se recupere totalmente.
   Ouço uma porta abrindo e fechando. Alguém entrou ou saiu do lugar. Deduzo que saiu, pois meu pai começa a falar sozinho.
   - Porque, meu Deus? Porque fui tão irresponsável? Ela podia ter morrido, e eu, eu sempre sem dar atenção pra ela, e aqueles olhos, aqueles olhos de menina assustada vão me assolar pro resto da vida. Porque não prestei atenção no trânsito? Porque tive que atropelar justamente minha filha? Porque, meu Deus, porquê? O que fiz pra merecer isso?
    Fico com dó de meu pai, apesar de ter escutado sua confissão. Por incrível que pareça, não consigo sentir raiva do homem que quase me matou, e que eu chamo de pai. Não consigo, porque, ao escutar o choro desabalado dele, desesperada, sinto uma necessidade urgente de confortá-lo e abraçá-lo. Abro os olhos para dizer ao meu pai que está tudo bem, que foi só um susto, mas, ao fazê-lo, tenho a sensação de não os ter aberto. Tudo está escuro ao meu redor.
   - Pai, quem apagou a luz? Pede pra eles ligarem?
   O choro dele para, tudo é silêncio.
   - Pai?
   Sinto um abraço forte me envolvendo, me transmitindo a energia que eu necessitaria para suportar o momento que estava por vir.
   - Pai? Liga a luz?
   - Minha filha, a luz está ligada.
   De repente, toda aquela escuridão faz sentido e a cegueira que eu acabava de perceber se rebela dentro de mim, de dentro pra fora, em forma de grito.
***

   Sentada em minha cadeira de balanço, na varanda de casa, eu sorrio. Há duas semanas, ao descobrir-me com vida, recém saída do coma em uma cama de hospital, eu experimentei um pouco do que todo cego passa. Sem poder ver nada, sem poder admirar a vida como ela realmente é. Felizmente, minha cegueira foi passageira, e hoje consigo enxergar novamente, apesar de precisar do auxílio de óculos. Descobri que a vida é mais complexa do que parece, e que é mais valiosa do que eu acreditava. Não tive minha festa de quinze anos com a qual eu tanto sonhava, mas, em compensação, ao invés daquele monte de presentes que eu esperava ganhar, o presente que eu recebi foi muito maior: a oportunidade de viver novamente, de poder sentir satisfação com a brisa suave da primavera acariciando meu rosto, de me sentir segura e sentir que existo verdadeiramente pela primeira vez. Hoje, tenho a preocupação de meus pais para comigo, o que eu não teria se não tivesse sido atropelada naquele dia. Hoje, apesar de não ter tido a festa, e apesar de ainda ter algumas cicatrizes do acidente, eu me sinto feliz e realizada, porque eu recebi o melhor presente que poderia ter recebido de Deus: a oportunidade de perdoar meu pai, e, acima de tudo, a oportunidade de recomeçar, de tentar de novo, a oportunidade de viver, e de aproveitar a vida mesmo com todas as circunstâncias.

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