Vagueava
pelos bosques ainda escuros, onde os primeiros raios da manhã ainda não tinham
chegado. Naquele dia em especial, havia no ar uma aura de mistério, que fazia
com que eu simplesmente caminhasse e contemplasse a obra maior de Deus. Mesmo
que a dor ainda fosse intensa, e que meu coração ainda estivesse em frangalhos,
ali pensei ter sido invadida por um misto de alegria e felicidade, que
desabrocharam em um sorriso há muito tempo esquecido, e que fizeram-me
esquecer, ao menos por um tempo, que eu era uma pessoa infeliz.
Caminhando, deixando meus passos gravados na terra molhada que eu
pisava, não percebi que desviei-me de
meu caminho, indo parar numa espécie de clareira, desconhecida até mesmo para
mim, que já moro há muito tempo nesta região.
Apesar de
não saber como voltar para o bosque, e de estar, confesso, perdida, resolvi
aproveitar a oportunidade para dar um passeio pela clareira e conhecê-la, pois
mesmo perdida, a noite estava distante.
Aquela
clareira era um verdadeiro paraíso, mostrando que contos de fadas podem ter sim
uma pitada de realidade.
Madressilvas, bromélias, tulipas, margaridas, rosas e mais um emaranhado
sem fim de espécies de flores de todas as cores e tamanhos. Um verdadeiro
paraíso! E, o mais incrível, aquele jardim era bem cuidado. Quem poderia ser o
responsável por esta obra de arte? Seria homem ou mulher? Apostava que fosse
uma mulher, mas não sabia da existência de moradias por estes lados. Se tivesse
alguma casa, seria no bosque ao lado do jardim, que distanciava uns dez metros
de mim. Apesar de eu nunca ter sido bisbilhoteira, queria falar com o dono ou
dona do jardim, e pedir algumas dicas para o meu próprio, que estava meio
abandonado.
Pensando
nisso, e sorrindo pelo efeito que o pequeno paraíso causara em mim, caminhei
vagarosamente os poucos metros que me separavam do bosque, absorvendo cada
detalhe das flores, que tinham, com toda certeza, um brilho diferente de todas
as que eu já tinha visto, como se fossem mágicas.
Nesse
momento, apesar de ansiar por chegar logo ao bosque, eu reparei em uma flor,
pequenina, que parecia irradiar fogo, tamanho o seu brilho. De cor laranja, e
com pétalas miúdas de delicadeza visível, eu não saberia identificar de que
espécie ela era.
Admirei-a
por um tempo que me pareceu infinito. Busquei nas profundezas da memória alguma
flor como aquela, mas minha tentativa foi em vão.
Voltei à
realidade ao perceber um certo movimento nas folhas de uma árvore frondosa, que
distanciava a uns dois metros de mim. Sorri. O bosque e o dono do jardim que me
aguardassem. Eu não sairia dali sem saber a quem pertencia aquela preciosidade.
Me dirigi
à árvore em que as folhas pareciam dançar. Afastei os galhos, e, para meu
espanto o que encontrei não foi uma forma de vida humana. Serpenteavam na minha
frente, pequenas fadinhas de feições delicadas como as flores do jardim às
minhas costas. Minha cara devia ser de espanto, ou de surpresa, pois elas
pararam com seu voo gracioso para me encarar como que procurando algo em meu
rosto que revelasse meus pensamentos e sentimentos.
Abri os
olhos e vi, não sem um misto de surpresa, duas criaturinhas voando na frente de
meus olhos. Belisquei meu próprio braço para confirmar se o que estou vivendo é
sonho ou realidade.
Pelo visto
era realidade, pois eu não acordei com um salto ou caí da cama depois do
beliscão. Ele só me fez sentir mais dor.
As
fadinhas continuavam ali, me encarando. Eu parecia ser atração para elas.
Sentei-me.
Não parecia estar em um bosque, pois não via nenhuma árvore perto de mim.
Parecia mais um casa. Perguntei às criaturinhas onde eu estava, e elas me
disseram que eu tinha chegado ao reino delas.
- Então
não estou no bosque?
- Não,
você está aqui, no Reino das Fadas.
- Mas, e
porque eu?
- Você
encontrou nosso portal, onde nos comunicamos com o mundo dos humanos.
- Mas eu
só vi o jardim...
-
Exatamente, mas é justamente no jardim que está nosso portal.
Devo ter
feito cara de quem não entendeu nada, pois ela acrescentou:
- Nosso
portal se manifesta através de uma flor laranja, pequena, delicada, suave,
miúda. Uma florzinha laranja de brilho incontestável que parece irradiar fogo.
- Ah.
- Agora,
se a senhorita me der licença, preciso ir a meus afazeres.
- Claro,
sem problemas.
A fadinha
de asas e feições delicadas saiu, e eu fiquei a imaginar como seria a minha
vida se eu tivesse asas.
Sorri ao
perceber que não estava sozinha. Tinha por companhia uma fadinha mais miúda que
a anterior, e que parecia tímida ao me observar.
- Oi – arrisquei.
Atrapalhada, ela tentou se esconder atrás de uma caixa ao perceber que
foi descoberta. Ri da inocência da pequenina, que por sua vez, espiava por
detrás da caixa.
- Não
precisa ter medo, pequena. Como é teu nome?
- Ga...
Ga... Gaia...
- Gaia.
Mas que belo nome.
Ela, por
fim, pareceu um pouco mais calma. Aos poucos, ela foi saindo de seu
esconderijo.
- Gaia?
- O que,
senhora?
- Pode me
chamar de senhorita. Não gosto de me sentir velha.
- Ah.
Senhorita, o que desejas?
- Quero
saber mais sobre vocês.
- Vocês
quem?
- Ora, as
fadas.
- Nós?
- Exato,
Gaia. Por favor, fale-me sobre vocês.
- Hum, ok.
Nós somos seres mágicos. Nossa existência remete a 500 anos, isto é, há 500
anos surgiu a primeira fada na face da Terra: a Fahir. Minha avó conta que
quando ela nasceu, filha de uma princesa que se apaixonou por um unicórnio, ela
era a primeira da nossa espécie. Porém, a mãe de Fahir odiou-a no instante em
que ela nasceu porque não parecia nem com ela nem com o pau dela. Fahir, então,
foi abandonada, deixada aos próprios cuidados. Ela vagou durante dias, com
frio, fome e medo, levada pelo vento ou pela chuva. Comia pétalas de margaridas
para sobreviver. Um dia, encontrou uma árvore oca, e entrou nela para se
abrigar da tempestade que viria e que parecia que seria forte. Ela adormeceu lá
mesmo, esperando que o mau tempo passasse. Fahir acordou no meio da noite com
uma luz ofuscante que vinha da parede da árvore. Aproximou-se, e ao tocar na
luz, esta a puxou para dentro. Era um portal, e ela caiu aqui, no nosso reino.
Contam as histórias que quando Fahir chegou, o reino era muito mais bonito do
que é hoje. Bom, ela chegou aqui e se encantou com o lugar.
“Descobriu
que o portal para o mundo dos homens mudava constantemente, e tratou de alterar
isso com sua magia. Criou o jardim que a senhorita viu, e transformou o portal
na flor laranja. O segredo do portal é que todo humano infeliz e com um coração
bom, que prestasse atenção nela, mesmo com sua pequenez, esboçasse felicidade
ao admirá-la, iria automaticamente acionar um alerta para a rainha, que viria
receber a pessoa.
“Bem,
preciso lhe dizer, antes de mais nada, que Fahir, bom, ela não era como nós,
ela não tinha nosso tamanho. Ela tinha a estatura de um humano normal. Mas isso
ainda não vem ao caso. O fato é que ela estudou muito bem as plantas, mas,
entre elas, principalmente as flores do nosso mundo, e descobriu um meio de se
auto reproduzir em um ser menor. Ali, ela criou fadas menores, criou a minha espécie.
Primeiro, ela criou um casal, que foi dando origem a toda a linhagem de fadas
que existem.
“Um dia, o
alerta tocou no mundo das fadas. Foi um alvoroço só. Fahir disse que iria
averiguar quem seria o humano que, mesmo sem querer, havia descoberto nosso
portal. Por um mês, Fahir sumiu. O mundo das fadas virou de ponta-cabeça.
“Foi uma
festança quando ela retornou. As fadas a receberam com uma festa de dar inveja
a qualquer humano. Porém, Fahir estava diferente. Em seu pulso, havia uma marca
desconhecida para as fadas do reino: uma coroa cinzenta, na parte inferior de
seu pulso da mão direita. Em seu discurso, Fahir disse que aquela marca era a
marca do amor que ela havia recebido. Que ela se apaixonara pelo humano que
acionou o alerta no reino. E que ela estava esperando um filho dele, que seria
o Príncipe das Fadas, o herdeiro do trono que ela ocupava.
“O
encerramento do discurso marcou o início dos festejos no reino. As fadas
ficaram em polvorosa. Nos meses que se seguiram, todos preparavam-se para a
chegada do príncipe.
“Porém,
uma certa aflição tomou conta do reino quando souberam da doença da rainha.
Dedicaram-se os criados a cuidar dela com ainda mais zelo e dedicação.
“Numa
manhã chuvosa de primavera, nascia Salin, o Príncipe das Fadas, e morria Fahir,
a Rainha das Fadas já a trezentos anos. Naquele dia nasceu minha avó.
“Você,
senhorita, deve estar pensando que o Salin já é velho, mas a verdade é que os
membros da família real, isto é, os descendentes de Fahir, só envelhecem até os
vinte anos. Mesmo com seus duzentos anos, Salin ainda parece ter vinte.”
- Então,
ele ainda vive?
- Sim.
- E você,
se não for incômodo, que idade tem? E sua avó, ainda vive?
- Tenho
cinquenta. Sim, ela vive, mas nós, fadas menores, começamos a envelhecer aos
setenta e cinco anos; até ali, temos cara de vinte também.
- E com
que idade geralmente morrem?
-
Geralmente duzentos e cinquenta anos.
- Hum.
-
Senhorita?
- Sim?
-
Provavelmente Salin irá vir visitar-te, pois és a primeira a acionar o portal
depois do dia em que a rainha saiu e apaixonou-se por aquele humano.
- Ah.
Escutamos
passos. Eles eram leves, delicados, pareciam pena batendo no chão. A maçaneta
da porta girou, e entrou um homem, elegante, bonito, forte, que aparentava ter
vinte anos. Porém, tinha duas asas coloridas e enormes, mas, sobretudo,
delicadas. O príncipe Salin.
- Boa
tarde, senhorita.
- Boa
tarde, alteza.
- Sem
formalidades. Me chame apenas de Salin.
- Atena.
- Atena,
que lindo nome.
Corei.
- Será que
você gostaria de vir comigo a um passeio?
- Seria
encantador.
Ele
estendeu-me a mão, e assim que pus a minha entre aqueles dedos seguros, ele
surpreendeu-me com um beijo delicado e demorado em minha palma direita.
O passeio
foi maravilhoso. O reino era maravilhoso. Havia milhares de fadinhas como a que
me contara a linda história da rainha. Havia uma imensidão ainda maior daquele
jardim encantado que eu descobrira pela manhã. Estava maravilhada com a
companhia de Salin, mas eu precisava ir. Expliquei-lhe minha intenção, e ele
concordou. Levou-me de volta a Gaia, para que ela me indicasse o caminho de
volta.
- Ele não
é lindo? – comentou Gaia.
- Sim, e
muito simpático e atencioso.
- Acho que
gostou de você.
- Pare de
dizer bobagens, Gaia.
- Ok, mas
bem que vi ele dando-lhe olhares furtivos.
- Gaia!
- Ok,
parei. Sabe, senhorita Atena, dizem que quando Salin apaixonar-se, sua
escolhida, depois de quatro horas, se verá com asas iguais às dele, e com uma
coroa cinzenta marcada no pulso, assim como houve com Fahir.
- Tá, tá,
tudo isso é muito lindo, mas quero voltar para casa.
- Ok,
deite-se, senhorita. Vou lhe aplicar essa injeção e você acordará na campina ao
lado do bosque e do jardim.
Acenei e
ela injetou o líquido púrpura fosforescente em meu braço.
Abri os
olhos. A lua já ia alta no céu, iluminando o jardim ao meu lado.
Sorrio ao
lembrar do sonho, das fadinhas, de Gaia, e, principalmente, de Salin.
Levanto. O
caminho é longo até em casa.
Passo por
um lago e resolvo beber água, pois minha garganta está muito seca. Ao lavar a
cara, e ver meu reflexo na água, algo me surpreende: vejo duas enormes asas
coloridas me emoldurando. Apalpo-as, achando que são fruto da minha imaginação,
mas constato que sim, são reais! Imediatamente, viro minha mão direita, e lá
está ela: a coroa cinzenta, em meu pulso, o símbolo da nova princesa das fadas.
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