Naquele dia eu precisava acordar cedo. Disso
lembro-me como se fosse ontem, porque acordo cedo todos os dias desde aquele em
que minha vida mudou por completo.
Lembro-me, e com certa vergonha, que eu era
um ser humano daqueles que se podem considerar, e com razão, arrogantes. Eu não
tinha tempo pra nada e pra ninguém, tudo o que eu fazia girava em função de um
único motivo: minha própria existência e felicidade. Mas acontece que eu não
era feliz, parecia que sempre faltava alguma coisa em minha vida. Eu não sabia
o que era, mas na época parecia ser a ascensão tão desejada na carreira de
advocacia. Era meu maior e único sonho. O resto, nada importava. Eu não queria,
me recusava determinantemente, a sair de casa nas noites de sábado, para ir a
algumas baladinhas, como era costume de alguns amigos meus. “Você precisa se
divertir”, diziam-me eles. Mas eu confesso, na época eu não gostava de ir
aquelas festas consideradas por meu subconsciente como sendo hipócritas. Nos
fins de semana, preocupava-me em adiantar alguns papéis e documentos da
empresa, para que, quem sabe, eu pudesse conseguir uma promoção, coisa que era
possível acontecer em breve, em razão, do que dissera meu chefe, “de uma
dedicação de corpo e alma à nossa empresa”. Me orgulhava disso, considerava-me
importante, um dos funcionários de maior destaque da “Advocacia e Cia”.
Naquela segunda-feira pela manhã, eu
começaria um novo horário na empresa. Trabalhava com um meio turno há seis anos
lá, e agora, por conta de minha total dedicação e ajuda para com meus chefes e
clientes, eu começaria o trabalho em tempo integral. Por isso, eu precisava
levantar cedo. Não podia atrasar-me de jeito algum, ou seria o fim do avanço em
minha carreira que sequer começara.
O despertador tocou às seis horas da manhã,
soando como algo que irritava facilmente meus ouvidos aguçados. Eu começaria
meu turno às oito horas, mas, como poderia haver congestionamento nas ruas movimentadas
daquela cidade, preferia chegar antes. Por isso, o despertador me acordou tão
cedo. Levantei de um salto da cama que eu começara a pagar em dezembro do ano
anterior, parcelada em doze suaves prestações, e que eu terminaria, (felizmente!), daqui a um mês.
Peguei apressadamente a roupa que tinha
jogado, na noite anterior, em cima da poltrona feita de algum material parecido
com o couro. As roupas estavam do avesso, e ainda por cima, a camisa social
branca que eu reservara estava, na ponta, perto do último botão de baixo,
manchada com algum tipo de molho, certamente do molho de cachorro-quente que eu
jantara na noite anterior. Decidi pôr aquela camisa mesmo, enfiando-a por
dentro da calça preta e lisa.
Desci as escadas que rangiam sob meus pés
correndo. Cheguei na cozinha velha e gasta, a procura de algo que pudesse se
tornar meu café da manhã. Qualquer pão velho e seco serviria, mas por sorte,
encontrei em um pote um restinho de café e um pão que ainda não havia estourado
o prazo de validade na geladeira. Seria isso mesmo: café com um pouco de açúcar
e um pedaço de pão.
Resolvi dar uma arejada na casa enquanto
esperava a água da chaleira ferver no fogão a gás que ganhei de minha mãe. Abri
a janela da frente a fim de contemplar o sol nascendo, coisa que nunca tinha
visto antes. Não sei por quanto tempo fiquei ali, mas voltei correndo pra
cozinha ao ouvir a água chiando, avisando que fervera. Fiz rapidamente meu café
e peguei o pedaço de pão e voltei pra janela: ainda tinha algum tempo. Quando
olho novamente para fora, vejo uma janela se abrindo na casa em frente a minha.
Dela, surge um pano sendo sacudido, provavelmente alguma toalha de mesa. A
toalha é recolhida e com isso posso ver a dona das mãos que a seguram: uma
mulher com um tom de pele acobreado, cabelos castanhos formando ondas, e olhos
verdes que parecem abrigar uma floresta inteira. A mulher ainda não havia me
visto. Não até terminar de dobrar a toalha e dar uma espiada na rua. Foi quando
os olhos dela se cruzam com os meus e ela me olha tão profundamente que eu
chego a ficar com uma sensação de desconforto. E então ela sorri. Fico
perplexo, quem é ela, totalmente estranha para mim, para sorrir para um
estranho como eu? Realmente existem pessoas sem bom senso neste mundo.
O relógio da sala, daqueles bem antigos, soa
indicando que são seis horas e trinta minutos. Droga! Precisava correr agora,
para não se atrasar. Vai correndo até a cozinha, e deixa desajeitadamente a
xícara dentro da pia. De noite iria se virar. Mas agora precisava ir pro
trabalho, e rapidamente.
Põe a chave na ignição e a gira. Felizmente
o velho carro pegou na primeira tentativa. Apesar de ele ser um frequente
visitador da oficina, ainda amava aquele carro. Era um carinho paternal, que eu
não queria estragar substituindo o pobre automóvel.
Felizmente o trânsito estava leve naquele
dia. Sem congestionamentos, sem maiores problemas para chegar adiantado no
trabalho. Meia hora de percurso, meia
hora antecipado.
Aquele dia fora extenuante e extremamente cansativo.
Nos últimos quinze minutos de trabalho naquela tarde, tudo o que eu queria era
voltar pra casa, tomar um banho quente e dormir agarrado em minhas cobertas.
E foi o que eu fiz. Não jantei, não analisei
nenhum caso novamente, não estudei nenhuma possibilidade de enfrentar o
julgamento de um caso na semana que viria.
Meu ritual foi o mesmo nas semanas
subsequentes. Acordar as quinze pras seis, tomar uma xícara de café e comer uma
fatia de pão quando ele não faltava, e abrir a janela para arejar a casa,
aproveitando para tomar seu café ao mesmo tempo em que observava o sol nascer.
E sempre que fazia isso, esse que se tornara
uma espécie de momento sagrado de cada manhã, ao olhar para a casa vizinha do
outro lado da rua, lá estava ela: a mulher de cabelos no formato das ondas e
olhos que abrigavam uma floresta inteira. E ela sempre estava com um sorriso
nos lábios, encarando-o. Nunca falou palavra alguma, o que o incomodava mais.
Às vezes, durante o trabalho, se pegava a observar a rua pela janela do
escritório, pensando na moça e em seu sorriso. Isso lhe provocava um certo
desconforto, mas passava. Logo se envolvia no trabalho e esquecia a vizinha da
frente.
***
Estava no meio da selva. Da selva de
concreto, e sorria como um tonto para uma flor que encontrara subitamente no
meio da rua, onde os carros passavam. No meio de toda aquela selva, aquela flor
conseguira vencer e nascer. E isso me provocava uma sensação de orgulho.
Orgulho da pobre flor e da garra e coragem que ela possuía, assim como eu
precisava ter nos tribunais.
Senti meu peito arder. Será que estava tendo
um infarto? Será que nos meus trinta e poucos anos eu morreria, jovem e com um
futuro brilhante pela frente? Não, não podia, mas era isso que eu tive certeza
quando um homem encapuzado colocou um revólver em minha cabeça e me mandou
entregar meus bens, todos que eu possuía. Disse que só tinha minha carteira e o
relógio que era herança de minha avó. Ele disse que não importava, ele queria o
que eu tinha. Entreguei a carteira e o relógio, e ele as entregou para um
comparsa conferir enquanto me mantia sob vigilância. O segundo abriu a
carteira, e, milagrosamente, lá haviam surgido um punhado de notas de cem
reais. “Obrigado, meu Deus”, pensei, porque aquilo significava a continuação de
minha vida. Ele sorriu para mim e disse que já, já, eu poderia me mandar.
Agradeci. O segundo encapuzado se aproximou de mim, enquanto o outro ainda me
segurava. “Posso ir?”, pedi. “Sim, pode.”, disse um dos dois, não me recordo
qual. E atirou.
Acordei suando frio, e gritando, e chamando
por socorro. Aos poucos, fui percebendo que estava em meu quarto, olhando para
meu roupeiro, e que aquilo, na verdade, fora um pesadelo. Apalpei meu corpo
inteiro e constatei que não, eu não estava morto. Fora apenas um susto.
Olhei para o rádio relógio. Seis horas e
meia. Essa não, a bateria do celular deveria ter descarregado enquanto eu
dormia. Precisava lembrar desses detalhes de vez em quando. Precisava me vestir
e comer rapidamente, para que não me atrasasse. Desci correndo as escadas, indo
escovar os dentes enquanto vestia e abotoava a camisa.
Não teria tempo pra tomar café, muito menos
pra comer alguma coisa. Enquanto escovava os dentes abri um pouco a janela. O
sol já havia nascido, mas meu ritual não estava estragado por causa disso. Além
do mais, a visão do sol já nascido era espetacular. Olhei para o outo lado da
rua, e vi aquela moça, sorrindo, encantadoramente, para mim, e novamente me
encarando. Nossos olhares, naquele momento, se cruzaram, e consegui sorrir
também. Nunca havia percebido antes, mas os homens que passavam pela rua
naquela hora da manhã, olhavam para ela, perdidamente apaixonados. E ela ali,
olhando para mim, me encarando, sorrindo, tentando fazer com que eu a notasse.
Meu relógio na sala de estar quebrou aquele encanto repentinamente e fez com
que eu lembrasse que estava atrasado. Quinze para as sete. Precisava ir. Não
podia mais olhar para a moça do outro lado da rua. Peguei meu casaco e corri
para o carro.
Cheguei cinco minutos atrasado, mas ainda
tive sorte por meu chefe ainda não ter se feito presente. Comecei imediatamente
a trabalhar, mas havia algo que não me deixava concentrar-me totalmente nos
casos que eu analisava. Tinha uma sensação de que havia algo errado. Uma espécie
de premonição. Credo! Eu devia estar ficando louco. Voltei a me concentrar no
trabalho. Passaram-se uma, duas, três horas, e nada daquela sensação
desaparecer. Onze horas da manhã, quase hora de meu almoço. Precisava ir
imediatamente lavar a cara, essa sensação de mal-estar deveria passar com uma
água fria na cara.
Bati na sala de meu chefe e pedi se podia ir
almoçar meia hora antes. Disse que não estava me sentindo bem, e que o almoço
poderia me ajudar com isso, pelo fato de eu não ter comido nada pela manhã. Ele
me permitiu a saída antes do horário.
Desci com o elevador e saí do prédio em
direção ao restaurante de comida por quilo onde eu sempre ia. Lá eu comia mais
decentemente do que em casa. Servi-me com uma porção de tipos de carne e nada de
saladas.
Ao sentar-me na mesa de quatro lugares para
comer, meu celular vibra no bolso da calça. Tiro ele e atendo com um alô
visivelmente irritado. É um número desconhecido, e então pergunto pelo nome da
pessoa que está falando. O homem se identifica como sendo da polícia, e diz que
está em minha casa, onde houve uma morte e uma tentativa de assalto. Pede-me
que eu vá até lá imediatamente. Concordei e ele desligou. Agora não conseguia
mais comer de jeito nenhum. Era isso que me incomodava pela manhã.
Paguei a conta e saí apressadamente pela
porta simples do restaurante. Atravessei a rua para subir e falar com meu
chefe. Expliquei a situação para ele e ele me disse que ocupasse o tempo que
precisasse para resolver o problema.
Fui para casa em uma corrida desabalada, me
advertindo a cada instante por não respeitar as leis que estavam indicadas nas
placas. Mas eu ansiava chegar logo no local.
Virei a esquina da rua que eu nem conhecia direito, apesar de morar há
quase um ano ali. Já havia um pequeno aglomerado de pessoas se avolumando cada
vez mais na frente da casa que era minha. Desci do carro batendo a porta,
forçando minhas vistas a procurar um policial qualquer que pudesse me explicar
o que acontecera.
Um policial baixinho e atarracado com poucos
cabelos grisalhos na cabeça que ameaçava ficar careca, me explicou que, pelas
nove e meia, três homens encapuzados e armados tentaram roubar minha casa. (
Nessa hora lembrei que, por conta do atraso daquela manhã, esqueci de trancar a
porta. Maldito despertador!) O homem continuava falando enquanto eu lembrava da
porta esquecida. Pedi-lhe se era verdade que alguém havia morrido, e ele confirmou
com um aceno de cabeça, parecendo comovido. Então disse-me que, na hora em que
os ladrões tentavam entrar na casa pela janela, uma mulher percebeu o movimento
dos bandidos e atravessou a rua correndo para tentar impedi-los. Ela morreu com
uma bala cravada no coração. Os ladrões haviam fugido sem deixar rastros.
Meu coração estava apertado, e, com uma
sensação ruim na alma, perguntei a ele quem era a mulher que tentara proteger
minha casa. Ele somente apontou para um canto, onde funcionários da ambulância
a ajeitavam para levá-la ao necrotério. Fui até a mulher. Fosse quem fosse, eu
queria agradecer a alguém, mas, infelizmente, aquela que tentara salvar minha
casa havia morrido. Não havia nada que eu pudesse fazer.
E então eu a vi e meu coração quase parou, e
hoje, eu desejo que ele tivesse parado, pois na minha frente, deitada em uma
maca rumo ao necrotério, estava aquela mulher que sempre me encarava do outro
lado da rua, todas as manhãs. E o mais intrigante era que ela sorria. Mesmo
morta, e com sangue manchando sua blusa apertada, ela sorria. Os olhos já
haviam sido fechados, e eu nunca mais os veria.
Abaixei-me. Lágrimas escorriam por meus
olhos. Milhares delas. Meu coração doía como nunca antes havia doído. Se antes
eu não entendia o que era o amor, agora eu tinha certeza de que ele existia.
Naquele momento eu descobri que estava, há muito tempo, desde que tinha
começado o ritual de abrir a janela todas as manhãs, apaixonado por aquela moça
que tinha um olhar impenetrável. Aquele
olhar em que cabia uma floresta inteira. Aquele olhar que ficaria para sempre
marcado em minha memória. Aquele olhar que somente tarde demais eu percebera
amar. Aquela moça, que eu nem sabia o nome, dera a vida por mim. Me amara em
silêncio, me encarando e sorrindo todos os dias do outro lado da rua. Ah, como
o coração doía, parecia que um pedaço de mim havia sido arrancado, para sempre.
Lágrimas de dor, que queimavam e ardiam, moldavam minhas faces, deixando
marcado o caminho de minha dor.
Como se me despedisse, fechei os olhos e
beijei-a. Foi um beijo leve, delicado, suave, que marcava minha despedida com
minha amada.
***
Isso acontecera há 51 anos. Hoje, sou um
velho que poderia ter uma meia dúzia de netos. Mas depois daquele dia, depois
de perder a pessoa que eu descobri amar depois de sua partida, e que eu amava
até hoje, eu nunca havia olhado para outra mulher.
Sentado na varanda de minha casa, relembro
daquela história. Relembrar se tornou meu segundo ritual de todos os dias.
Ainda abria a janela todas as manhãs, onde esperava vê-la, a sorrir pra mim, a
me encarar, mas é claro que isso nunca mais seria possível.
Hoje sou aposentado, e minha carreira de
advocacia nunca mais importou depois daquele dia. Relembrar a história da morte
de minha amada me faz doer o coração. Mas faço isso na esperança de que eu
sofra alguma espécie de infarto e eu possa, finalmente, me juntar a ela.
Sorrio, lembrando do sorriso lindo que ela
tinha, e dos olhos verdes que marcaram todos os meus melhores sonhos e meus
piores pesadelos. Meus sonhos mostravam como teria sido nossa vida se eu não
tivesse sido tão tolo e ignorado ela quando ela me sorria pela manhã. Mas,
mostrava também uma cena que me fazia gritar e espernear enquanto dormia. Eu sonhava ver os ladrões tentando invadir
minha casa. Então ela entrava em cena e os ladrões a matavam. E eu, no sonho,
ficava imóvel, não conseguindo fazer nada. Isso me angustiava e por isso eu
acordava ao som de meus próprios berros.
Amarga a minha dor. Mas, fazer o que, foi
minha lição, não escolhi minha vida detalhe por detalhe.
Olho para o outro lado da rua e vejo aquela
casa que esconde os mistérios e segredos de minha amada, intacta desde o dia de
sua morte. Quando ela faleceu, a família quis vender a casa, não precisava mais
dela. Ele a comprou, pois não queria acordar pela manhã e deparar com um
estranho na janela de sua amada.
Mas nunca entrou na casa. Tinha a chave, mas
nunca tivera coragem de entrar no lugar que era da moça que ele nunca deixara
de amar. Nos seus oitenta e seis, agora, sentia uma imensa vontade de desvendar
os mistérios que ela guardava para si.
Sorriu, e decidiu-se: iria conhecer as
profundezas do santuário da moça que morrera por ele.
Abandonou a velha cadeira de balanço.
Colheu, no seu jardim, uma margarida branca, simplesmente por impulso. Abriu o
portão enferrujado que rangia. Estava precisando de um óleo.
***
Atravessando lentamente a rua, ele nem
percebeu o carro que vinha desordenadamente em sua direção. A dois passos da
calçada, ele o acertou. O senhor idoso que aparentava estar perto dos cem anos
e que segurava uma margarida na mão, morreu na hora.
A dois metros do corpo inerte e já sem vida,
atrás daquela porta detalhada em mogno, na casa que tinha uma janela grande que
guardava uma floreira onde tinham margaridas brancas plantadas, estava uma
carta, de sete páginas, declarando um amor ardente e sem solução, esperando o
recém falecido há longos cinquenta e um anos.